Um olhar estetizante

Por Antônio Sérgio Bueno

Ilustração: Rubens Lima

Aquarela: Gabriel Alves

Leitura de A teus pés, de Ana Cristina Cesar

INTRODUÇÃO

Ana Cristina Cesar surgiu como um nome relevante para a poesia brasileira, na virada da década de 1970 para a de 1980. Nesse momento, na cultura brasileira, convivem o rigor e a erudição dos poetas concretos (Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari), a linguagem coloquial e anárquica das letras das canções tropicalistas (Caetano Veloso, Gilberto Gil e Torquato Neto) e a emergente valorização do cotidiano, acompanhada pela expressão radical da intimidade por meio de uma linguagem bem próxima da oralidade, nos textos dos chamados “poetas marginais” (Francisco Alvim, Cacaso, Charles, Chacal, Ledusha, entre outros).

Paulo Leminski, poeta-síntese de todos esses grupos e tendências, em carta de 1977 a Régis Bonvicino, formula esta certeira profecia dos caminhos que trilhariam a poesia e a cultura brasileiras na década de 1980:

Nas décadas de 1980 e 1990, as organizações grupais, tanto nos movimentos sociais quanto no mundo artístico, enfraqueceram-se, porque a luta pela sobrevivência individual tornou-se tão áspera que as pessoas não mais encontravam tempo nem disposição para dedicar-se às lutas coletivas. Cada poeta inventava sua própria poética. Grande poeta e crítico da cultura brasileira dessa época, Haroldo de Campos falava, por um lado, em degradação do princípio-esperança, dos valores utópicos voltados para o futuro. Por outro, afirmava a vitória do princípio-realidade, ancorado no presente.

Diante do silêncio das vozes guerreiras que se erguiam nos manifestos dos grupos artísticos, surgem as expressões marcadamente individuais: Arnaldo Antunes e Sebastião Nunes dialogam criativamente com a vanguarda concretista; Manoel de Barros focaliza os pequeninos seres da terra; Adélia Prado encanta-se com a vida interiorana e lança seu grito de erotismo feminino sob o signo do sagrado; Francisco Alvim oscila entre a herança modernista e a proposta marginal.

Pequeno niilismo, confissões mínimas de minúsculos desejos. Poética minimalista. Essa “poética do menos” tem como precursoras as “pílulas poéticas” da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. É nesse contexto que surgem a poesia e a prosa singularíssimas de Ana Cristina César. Mesmo quando ainda fazia parte do grupo “Nuvem Cigana”, ao lado dos chamados “poetas marginais”, seu “olhar estetizante” já se destacava pelo ineditismo.

Algumas frases do poeta francês Baudelaire, extraídas de “Elogio da Maquilagem”, ajudam a pensar a natureza e a composição do texto de Ana Cristina, que não se entrega com facilidade ao leitor que por ele se interessa:

As “luvas de pelica”, bela imagem de uma “escrita de simulação”, ajudam a compor a maquilagem exibida no livro
A teus pés. Simular é fingir ter ou ser o que não se tem e não se é. O sujeito da escrita de Ana Cristina lembra o eu lírico “fingidor” de Fernando Pessoa, que chega a fingir ter ou ser até o que realmente tem ou é: O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente2. Esse “teatro da intimidade” encena-se com várias poses e máscaras. Intimidade, sim, mas de cartão-postal.

Uma última observação introdutória: se a poesia marginal girava em torno da expressão que revelasse a intimidade do eu lírico, através de registros de fatos corriqueiros e estados de alma cotidianos, em A teus pés predomina a construção,
o trabalho com a linguagem. Uma linguagem que testa a si própria.

Agora, passaremos a uma leitura horizontal dos poemas de A teus pés. Nem todos os textos serão contemplados. Nosso critério é o da relevância que atribuímos aos textos escolhidos. Nosso leitor deve ter o livro nas mãos para ler os poemas, seguidos dos respectivos comentários feitos por nós.

DESENVOLVIMENTO

A teus pés tem sua primeira edição em 1982, às vésperas da abertura política no Brasil. Trata-se de um livro dividido em quatro partes: “A teus pés” (1982), “Cenas de abril” (1979), “Correspondência completa” (1979) e “Luvas de pelica” (1980). Muitos textos desse livro não têm título. É o caso do que abre a primeira parte. Começa assim:

O ambiente mostrado resulta de uma composição artificial: trilha sonora, vozes, piano. Nem o silêncio é natural, é produzido eletronicamente pelo sintetizador, do qual vem também o barulho de asas batendo (não existem pássaros). Tudo fruto do apuro técnico. No mesmo texto, em seguida, a voz que se dirige ao leitor afirma e nega, simultaneamente, o que diz:

A linha (verso) seguinte diz:

Mas essa linha citada tem duas frases, e a segunda nega, portanto, o que afirma a primeira. Um pouco adiante, nova contradição:

A autora de A teus pés é uma “pasticheuse” (pastichadora), ou seja, sua escrita é tecida com base em fragmentos de escritas alheias. É impossível identificar todas essas vozes.

Já falamos no caráter de encenação desses textos, e isso se confirma na seguinte frase:

Não importa se as cenas são reais ou imaginárias. Portanto, o leitor não precisa tomar como verdade indiscutível uma frase como esta:

Tanto que tal frase é seguida por esta outra:

A frase anterior ostenta um tom melodramático e irônico, que sugere apenas uma pose de vida real. A última frase dessa página nega novamente uma pretensa ingenuidade natural:

O texto da página 14 tem o título de “Sete chaves”, expressão usada para dizer que se guarda muito bem um segredo. Começa com um convite:

Tudo aponta para uma confissão, mas esse clima de intimidade e cumplicidade com o interlocutor é quebrado pelo próprio sujeito poético:

Tanto o eu lírico, quanto o “tu”, o interlocutor, são termos vicários, isto é, o “eu” ocupa o lugar de emissor e o “tu” pode ser qualquer interlocutor ou um eventual leitor.

Aos críticos que classificam apressadamente a autora como “poeta marginal” ou “poeta dos anos 1970” (o que é apenas meia verdade), ela responde no poema seguinte, “Inverno europeu”, com as seguintes frases:

O sujeito poético ameaça uma indiscrição, que é logo freada pelo que vem entre parênteses:

Por falar em indiscrição, o texto seguinte, “Noite carioca”, termina com estas palavras:

Ora, a expressão “mais discreta do mundo” já mostra um destaque, negando a mencionada discrição.

No poema “Marfim”, há alguns dos muitos diálogos intertextuais que se multiplicarão nesse livro, o que nos permite falar em escrita polifônica (muitas vozes entrelaçadas). Na sexta linha, está o título de um conto de Clarice Lispector:

Um dos exemplos mais importantes de intertextualidade está no poema “Atrás dos olhos das meninas sérias”. Trata-se
de uma paródia da última estrofe do poema “Variações sérias em forma de soneto”, que se encontra no livro Estrela da tarde, de Manuel Bandeira:

A versão de Ana Cristina apresenta a disposição dos versos mais próxima da prosa: desaparecem as rimas e a metrificação (decassílabos) de Manuel Bandeira. Adicionalmente, troca-se o pronome “eles” por “elas”, além de se omitir o “vós” a quem se dirige o eu lírico:

No soneto de Manuel Bandeira, “eles” são os olhos do eu lírico; no texto de Ana Cristina, o olhar é o da mulher, e isso muda tudo. “Elas”, portanto, refere-se às mulheres. Na página seguinte, outro texto com o mesmo título (“Atrás dos olhos das meninas sérias”) mantém outra relação com o soneto de Bandeira, agora explorando a terceira estrofe do citado soneto:

Na estrofe de Manuel Bandeira, quem ousa são os olhos do sujeito poético. No texto de Ana Cristina, surgem várias imagens de mulher, com o traço comum da rebeldia, da ousadia:

Nessa frase, há uma óbvia alusão ao movimento separatista basco, que reagiu à dura repressão da ditadura franquista na Espanha. O termo “melindrosa” refere-se às feministas da década de 1920, que se revoltaram contra o papel reservado à mulher pela sociedade. Daí expressões como “Pulo para fora”, “Não abano o rabo nem rebolo” e “Não olho para trás”, além da ameaça final:

“Charlie’s Angel” refere-se a uma série de TV estadunidense, protagonizada por três mulheres, detetives particulares, lindas e sensuais, especialistas em artes marciais, portando armas de alta tecnologia. Essa beleza e essa sensualidade são reivindicadas pelo sujeito poético feminino que se anuncia assim, na primeira linha do texto:

A aliteração da consoante V sugere um voo, mas “avião” é também gíria para mulher bonita e sensual.

No poema “Este livro”, da página 29, o sujeito poético é uma “sereia de papel”, que procura seduzir o leitor, convidando-o a entrar no clima emocional dos poemas e aceitar as “confidências” da voz poética:

A expressão “tilintar de verdade” adverte o leitor da impossibilidade de apreender qualquer verdade por inteiro, porque dela chega-nos apenas um “tilintar”, sinal exterior e superficial.

Na parte II de “Duas antigas”, há a expressão “F for fake”, um filme de Orson Welles, que se inicia com o ator-diretor realizando diversos números de mágica para uma criança que, ingenuamente, assiste ao ilusionismo. Como no livro de Ana Cristina Cesar, há várias citações literárias no filme, uma espécie de filme-testamento que resume a trajetória de Orson Welles. Logo, é evidente o paralelismo entre o processo criativo do cineasta e o da autora. Além disso, vale registrar que Ana Cristina está empregando a expressão “fake news” neste livro de 1982, portanto, algumas décadas antes de ela tornar-se moda nos dias atuais, nos quais se espalham fake news nas redes sociais.

Já que falamos em cinema, tomemos o título do poema da página 47, “Travelling”, que significa o movimento de uma câmera cinematográfica. Algumas páginas antes, na página 34, tivemos uma clara referência ao filme O anjo exterminador, de Luis Buñuel, nestas linhas:

Na mesma página, a expressão anterior “forest of mirrors” (floresta de espelhos) aponta para a impossibilidade de se chegar a uma originalidade absoluta. O que há são espelhamentos, reflexos e reflexões, novos modos de dizer o já dito. O espelho é uma metáfora reincidente no livro, como na bela sinestesia

ou na relação interna entre o consciente e o inconsciente do sujeito deste discurso:

O poema “Cabeceira”, da página 39, começa com o adjetivo “Intratável”, com o qual o sujeito poético define a aspereza de sua própria voz e de seu próprio lirismo, recusando a tradição adocicada da poesia brasileira. Outra recusa importante vem a seguir:

A autora adverte seu leitor de que ela não gostaria de que ele ficasse abelhudamente à espreita de segredos pessoais dela, nem de que tentasse adivinhá-los, e de que, até no esforço de captar o máximo de possibilidades significativas dos textos, o melhor era acostumar-se a um modesto entendimento possível. Apesar disso, o leitor, quando já se acostumou ao antilirismo dos textos, é desorientado por uma cena amorosa de extrema delicadeza lírica:

As alusões ou referências nesse livro vão muito além do campo da poesia e da literatura em geral. Já vimos a presença do cinema e, agora, vejamos como a música também se faz presente nos textos de A teus pés. O início do poema “Samba-
-canção”, da página 46, faz uma transição entre a poesia e a música popular:

Quem conhece a história da Música Popular Brasileira reconhece duas alusões: ao primeiro samba gravado no Brasil, Pelo telefone, de Ernesto Santos – mais conhecido como Donga – e do jornalista Mauro de Almeida; a segunda referência é à composição Ta-hí, de Joubert de Carvalho, gravada por Carmem Miranda em 1930, que se inicia assim: “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim / você tem / você tem / que me dar seu coração”. Arte comparada.

No poema “Lá fora”, encontramos um procedimento muito frequente nesses textos, que é a mistura de versos eruditos e linguagem popular. Quase no meio do texto, lemos:

Os leitores de Fernando Pessoa, nos poemas do heterônimo Álvaro de Campos, reconhecerão imediatamente os versos iniciais de “Adiamento”:

Por outro lado, todos reconhecem as indefectíveis placas penduradas nas paredes das pequenas vendas e botequins: “Fiado só amanhã”. Seis linhas adiante, encontra-se a expressão popular “pendura a conta”. Nesse mesmo texto, aparece, ainda, a expressão “boa bisca”, explorada em alguns de seus significados: “mau caráter”, “meretriz” e “mulher dissimulada”.

Na página seguinte, recortamos o verso:

A palavra “concorde” tanto pode ser uma forma do verbo “concordar” quanto o nome de uma aeronave, o que vai atrair a palavra “espaçonave”, que, por sua vez, nos remete aos versos “O sol se reparte em crimes / espaçonaves / guerrilhas”, da canção “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, marco inicial do movimento tropicalista.

Com “Bonde do desejo”, evoca-se a peça de teatro Um bonde chamado desejo (1947), de Tennessee Williams (1911-1983). Agora, o diálogo entre as artes envolve também o teatro. Não por acaso, poucas páginas adiante, lê-se uma frase decisiva para a compreensão de todo o livro:

Nessa mesma página, observamos uma referência a dois livros muito lidos nas décadas de 1960 e 1970, no seguinte trecho:

Referimo-nos a Ascensão e queda do Terceiro Reich, de William L. Shirer, e a Declínio e queda do império romano, de Edward Gibbon.

O último texto dessa parte é “Fogo do final”, que apresenta uma cena teatral envolvendo um possível amado ou qualquer leitor:

Vale lembrar que o título do livro, com pequena variação, aparece na citação nesse trecho do poema. A cena prossegue e parece ganhar contornos violentos: “bofetada de estalo”, “baque de fuzil”, “pratos limpos atirados para o ar”. Apesar disso, o leitor sempre é lembrado do caráter caricatural e cenográfico do que vem sendo falado, por meio de expressões como “circo instantâneo” e “pano rápido mas exato descendo / sobre a tua cabeça de um só golpe...”

Como já dissemos anteriormente, quem fala “eu” nos poemas desse livro tanto pode ser o “eu lírico” quanto o “eu biográfico”, e o “tu” ou “você” tanto podem designar um interlocutor biográfico como um leitor virtual. Nos últimos versos de “Fogo do final”, o sujeito poético sente necessidade de fugir, pelo menos em poucas linhas, da duplicidade que acabamos de mostrar, e escreve:

E algumas linhas adiante:

O caderno terapêutico propõe-se como não literatura; não seria esse “jogo da verdade”, no entanto, a última volta do parafuso na engrenagem da encenação, um “fingimento de deveras”, mas ainda jogo, no qual a última máscara é o próprio rosto? Talvez seja impossível, nesse livro, dissociar os campos da encenação artística e da verdade biográfica.

A segunda parte de A teus pés enfeixa os textos de “Cenas de abril” (1979), com o subtítulo “poesia”, rotulando o gênero literário que deveria cobrir esses textos. Contudo, a leitura destes, como veremos, não confirmará tal rótulo. Um falso “Índice onomástico” aparece na página à esquerda, antecedendo o próprio título, estampado na página à direita. Esse índice compõe-se de nomes de artistas, críticos de arte e poetas que são importantes referências para Ana Cristina Cesar.
A dedicatória que segue o “Índice onomástico” contempla a figura do poeta e amigo Armando Freitas Filho.

O poema “Primeira lição”, da página 62, tem caráter metalinguístico, porque apresenta, didaticamente, os conceitos tradicionais dos gêneros da poesia, mas vai focalizar apenas o gênero lírico. O texto desenvolve-se como uma aula:

Com base nessas linhas, serão definidas as várias espécies que compõem o gênero lírico, com uma ênfase indiscutível às espécies ligadas à temática da morte: Nênia, Epitáfio, Epicédio. Trata-se de um texto de caráter radicalmente irônico, já que a definição de lirismo explicitada neste texto (“Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, / sincero e pessoal”) não prevalece no livro, que exibe uma subjetividade, um “eu de papel”.

Na página seguinte, um texto que define bem a prioridade que o sujeito poético dá ao caráter linguístico, formal, construtivista do poema:

É a atenção à materialidade do signo verbal. O “efeito de real” é dado pela expressão “filete de sangue”. Vale a analogia com o pintor Paul Klee, que, ao pintar uma folha, pintava a seiva da folha. Para a pintura, por exemplo, não basta reproduzir o visível: é preciso tornar visível alguma coisa.

O título do poema “Casablanca” recorda o filme homônimo, emblema do amor romântico, dirigido por Michael Curtiz e estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. O primeiro verso do poema diz:

Minha Loucura é uma das cinco vozes do poema “As enfibraturas do Ipiranga”, que faz parte do primeiro livro de poemas modernistas do Brasil, publicado em 1922, com o título de Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade. O verso

bloqueia o derramamento sentimental traduzido na imagem irônica “teu canteiro de taquicardias” (p. 64). O verso

parodia, através de uma superposição espacial, o verso da canção em que o próprio Roberto fala nas “curvas da estrada de Santos”.

Na página 66, encontram-se estes dois versos:

O segundo deles dialoga com versos de dois poetas brasileiros: um de Oswald de Andrade, do conjunto de seis pequenos textos de amor sem sentimentalismo elaborados por bilhetes trocados entre Oswald e a pintora Tarsila do Amaral, reunidos sob o título de “Secretário dos amantes”:

De resto, o citado verso de Ana Cristina retoma, integralmente, um verso de Manuel Bandeira no poema “Irene no céu”, do livro Libertinagem4, de 1930. Esse mesmo poema de Bandeira é citado novamente, de forma parodística, na mesma página 62, de A teus pés:

Um texto como “Instruções de bordo” exige um enorme esforço de decodificação por parte do leitor, devido ao grande número de informações nele contidas. A dedicatória é para a própria autora: “(para você, A.C., temerosa, rosa, azul celeste)”. O rosa, símbolo cromático do feminino, está justaposto ao azul, símbolo cromático do masculino, compondo uma mistura de gêneros (androginia), reincidente nos poemas de A teus pés. Uma anotação quase no final do livro retoma o tema da ambiguidade sexual:

Digamos que o ponto de partida da “ciranda imagética” de “Instruções de bordo” seria uma viagem aérea e suas instruções de bordo. Os versos iniciais parecem recriar uma cena de violência a bordo da aeronave, no decorrer do voo:

Frases quase sempre nominais (exceção para a forma verbal “suguei”) compõem a cena. O peso da presença do sangue é atenuado pela leveza da palavra “flocos”. Há, simultaneamente, toda uma sugestão de erotismo: a “faca” e os “charutos úmidos” são ostensivos símbolos fálicos; “lábios” podem ser da boca ou da vagina. A forma verbal “suguei” é muito usada para descrever gestos eróticos, e a expressão “atrás da porta” confirma o caráter transgressor e oculto dessas ações. O rumo semântico dessa leitura acentua-se nos versos subsequentes:

É óbvia a referência a Greta Garbo, atriz sueca e musa de Hollywood nas décadas de 1920 e 1930. Além disso, “greta” também é uma fenda, o que pode representar a vagina. Esse poema tem, ainda, alguns detalhes curiosos, escondidos nesta sequência:

A “metálica barriga” é o próprio corpo do avião. À figura de um feio comissário de bordo, o sujeito poético justapõe a do profeta Jonas, que ficou um tempo na barriga de uma baleia, segundo o mito bíblico. As aeromoças são vistas como “três misses” e o próprio avião – com sua tripulação e seus passageiros – é comparado à “nau dos insensatos”. Essa “stultifera navis” (A Nave dos Loucos) era um barco que, no fim da Idade Média, passava pelo Rio Reno, recolhendo os loucos, os bêbados e os vagabundos.

Um traço formal da linguagem poética, também presente nesse livro, é a aproximação de palavras de sons semelhantes (palavra-puxa-palavra), como esta sequência de palavras:

Na página seguinte, encontra-se o texto “Enciclopédia”, que se resume a um verbete de uma enciclopédia convencional. É mais um exercício de expansão do gênero literário. Trata-se da palavra “Hécate ou Hécata [...] / Divindade lunar
e marinha”. A estratégia de Ana Cristina é retirar do verbete seu caráter informativo e conferir-lhe um estatuto
(efeito) poético.

O poema “Arpejos” divide-se em três partes e contém anotações em forma de diário. O leitor experimenta um prazer furtivo diante de uma anotação impactante, de caráter íntimo, atrevido, como a que abre a parte 1:

O mesmo efeito, que leva o leitor a identificar o eu lírico com o sujeito biográfico, reaparece na abertura do poema “Anônimo”:

Voltando ao poema-diário “Arpejos”, agora na parte 2, há a seguinte anotação:

A citação anterior apropria-se, claramente, da seguinte frase (verso) do texto (poema) “Namorados” do livro Libertinagem,
de Manuel Bandeira:

São reincidentes esses jogos intertextuais, e o poeta Manuel Bandeira foi uma referência fundamental para os jovens poetas das décadas de 1970 e 1980.

Na parte 3 de “Arpejos”, mais uma alusão ao espelho:

Passemos ao poema “Nada, esta espuma”, totalmente construído com base em uma apropriação de parte do soneto “Brinde”, de Mallarmé, do qual transcrevemos a primeira e a última estrofes:

O poema de Ana Cristina apresenta-se assim:

Em A teus pés, não é essa a única operação intertextual com o poeta francês Mallarmé. Observe este trecho sem título:

A palavra “azul” é uma das favoritas de Mallarmé. A sedução do azul metaforiza-se na “sereia de papel”, uma das imagens privilegiadas do eu lírico nesse livro, ou seja, a sedução dessa escrita não é a de uma mulher nem a de uma sereia, mas a do espetáculo textual oferecido pelo sujeito poético. Vale lembrar, ainda, que Wide sargaço sea é o título de um romance de Jean Rhys, publicado em 1966.

Voltando a “Nada, esta espuma”, o verso “insisto na maldade de escrever” é metalinguístico, isto é, fala do próprio ato da escrita poética. Pensando na última estrofe do soneto de Mallarmé (transcrita anteriormente), a branca vela é a metáfora da página branca. A motivação do “brinde” erguido pelo eu lírico é o próprio poema. Este é, também, a “espuma de nada” de que fala o poema de Ana Cristina.

De passagem, lembramos o canto X da Odisseia, no qual Ulisses se faz acorrentar no mastro do navio para poder ouvir o canto da sereia, sem perder a própria vida por causa da sedução desse canto. No texto parodístico de Ana Cristina, o canto melodioso da sereia é substituído por “uivos”, mas os “seios” da sereia permanecem como objetos de desejo do eu lírico.

Na sequência, há três poemas com o mesmo título, “Último adeus” (I, II e III), o que é uma contradição em si, dado que o de número III é o único que, de fato, poderia ser considerado o “último adeus” (essa expressão não deixa de ser um pleonasmo, visto que “adeus” já é um gesto último).

Nas páginas seguintes, alguns registros em forma de diário. O registro “16 de junho” começa com a retomada da “ambiguidade de gênero”, reincidente no livro:

Trata-se de anotações de um diário nada convencional, pois as datas não estão na esperada sequência cronológica. Além disso, não existem limites entre ficção e depoimento autobiográfico. O registro “21 de fevereiro” toca exatamente nesse ponto:

Nesse mesmo registro, algumas referências são identificáveis:

Baudelaire é citado mais de uma vez no livro. Sabe-se que ele amava os gatos, fato que explica essa citação, mas não explica o paradoxo em “Abomino Baudelaire querido...”.A frase

é óbvia paródia dos versos “Recebe o afeto que se encerra / em nosso peito juvenil” do Hino à Bandeira Nacional, cuja letra é de Olavo Bilac (1865-1918); e a música, de Francisco Braga (1868-1945). Adiante, uma referência à Gata Borralheira, outra ao Pequeno Polegar e uma terceira a A Bela e a Fera. Ei-las:

“Guia semanal de ideias” é uma variante do gênero “diário”, com registros de segunda a domingo. Na segunda, menciona-se a novela “Duas vidas”; na terça, este registro lacônico: “Di do Glauber”, um documentário do cineasta Glauber Rocha sobre o velório do pintor modernista Di Cavalcanti; na quinta, a quebra de um clichê linguístico: “[...] para inglês não ver”; no domingo, anotações de versos de Álvares de Azevedo. A repetição de palavras, uma característica formal que ainda não mencionamos,
é frequente no livro e exemplifica-se nesse “Guia semanal de ideias”: “Eu morro, eu morro, leviana sem dó [...]”. Nas últimas linhas, a ambiguidade de gêneros faz-se presente mais uma vez: “Mas como sou chorão [...] Continuo melada por dentro” [grifos nossos].

Em “Jornal íntimo”, as datas são, novamente, aleatórias. Há dois registros com a data de “27 de junho”. O primeiro deles termina assim: “Tomo banho de lua”. Essa frase remete a um rock que fez muito sucesso no final dos anos 1950,
na voz de Cely Campelo. No segundo, encontra-se esta frase: “Me sinto em Marienbad junto dele”, que evoca o filme O ano passado em Marienbad (1961), de Alan Resnais, inspirado no romance A invenção de Morel (1940), do argentino Adolfo Bioy Casares. No registro “25 de junho”, a narradora menciona um conto de outro grande escritor argentino, Jorge Luis Borges: “Quando acabei O jardim de caminhos que se bifurcam [...]”. A anotação do dia “28 de junho” começa com esta frase: “Cantei e dancei na chuva”. Todos se lembram da cena antológica do filme musical Cantando na chuva, de Stanley Donen.

A segunda parte de A teus pés termina com “Na outra noite no meio-fio”. A primeira frase desse texto foi apropriada do início do primeiro capítulo do romance Dr. Sax, de Jack Kerouac, um dos nomes mais representativos da chamada “literatura beat”, como se pode conferir na epígrafe escolhida pela própria autora para explicitar a fonte explorada.
Os representantes dessa literatura escreviam seus textos enquanto consumiam alucinógenos e perambulavam de carro (“on the road”) pelos Estados Unidos. Uma escrita um tanto delirante, que contaminou o próprio estilo de Ana Cristina.

A terceira parte de A teus pés contém apenas uma carta, embora tenha o título irônico de “Correspondência completa”
(na verdade, intencionalmente incompleta). Mantém-se a mesma técnica fragmentária das partes anteriores, que pode ser chamada de “mosaico de citações”. A referida carta abre-se com o vocativo “My dear”, menos emotivo que “minha querida”. A carta é assinada por Júlia e endereçada a outra mulher, Cris, que pode ser considerada, até mesmo, um duplo da própria autora, já que Cris é o apelido mais comum de Cristina. Cris também é o nome de uma cachorrinha, o que resulta na ambiguidade de frases como esta:

Quando Júlia (Ana Cristina?) fala em “inteligência das mocinhas em flor”, o leitor de Marcel Proust lembrar-se-á de
À sombra das raparigas em flor, título do segundo volume de Em busca do tempo perdido.

A figura de Gil, que surge na página 94, representa o leitor que investiga, em cada verso, “sintomas, segredos biográficos”. Mary representa um tipo de leitor oposto ao de Gil: “Já Mary me lê toda como literatura pura e não entende referências diretas” (p. 96). Talvez Ana Cristina desejasse um tipo de leitor entre esses dois extremos.

A última parte do livro intitula-se “Luvas de pelica” e é um diário muito mais literário que íntimo. As “luvas” interpõem-se entre o sujeito biográfico e os variados sujeitos ficcionais espalhados no corpo do livro. A voz poética declara:

Apesar disso, continua a escrever. Depois de falar em “pêndulo batendo”, escreve estas frases pendulares:

Não se busca aqui uma aproximação com o real. O “manequim” que aparece adiante é mais um simulacro (disfarce, simulação, imitação):

Na página 106, sublinhamos este trecho:

A primeira frase é muito atual na segunda década do século XXI. Vivemos, no Brasil e no mundo ocidental, uma polarização ideológica, alimentada por um ódio tão visceral que faz lembrar o livro O médico e o monstro, de Stevenson, no qual Mr. Hyde exercita, com inteira liberdade, o ódio reprimido pelo Dr. Jekyll. Quanto ao termo “bliss”, na segunda frase citada anteriormente, é o título de um conto de Katherine Mansfield (KM, nesse livro) e significa aqui a experiência do êxtase.

A escrita de Ana Cristina é voluptuosa e vem de alguém que parece viver sempre no limite. Isso ajuda-nos a perceber melhor o tensionamento de sua arte.

Todo o já comentado processo de apropriação de discursos alheios encontra sua expressão neste registro:

A definição do conflito entre explícito e elíptico encontra-se nesta frase:

Quando, adiante, ela diz:

lembramo-nos, imediatamente, dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” da Capitu de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Também Ana Cristina só fala de sua intimidade obliquamente.

CONCLUSÃO

Muitos leitores de Ana Cristina Cesar ficam mais interessados em saber quem é a própria Ana, essa “criatura enigmática” que produz “textos enigmáticos”, porque percebem que essa “sereia de papel” sempre está escapando. Propomos, então, como característica central desse “eu lírico mutante”, uma desidentificação permanente.

O último texto do livro chama-se “Epílogo” e vai suscitar, também, nossos últimos comentários. Esse texto inicia-se com uma frase em inglês, seguida de sua correspondente tradução em português:

Os cartões-postais representam bem a maquilagem (à qual nos referimos no início deste estudo) e o “olhar estetizante”, que serviu de título ao nosso trabalho. A autora-narradora apresenta uma última alegoria de seu trabalho literário:
a prestidigitação de um mágico. Ela figura seus recursos ilusionistas nesta sequência de frases:

Quando se diz, nas duas últimas linhas do livro,

termina o espetáculo, encerra-se o livro, que transita livremente por vários gêneros literários e é, também, pioneiro de toda a literatura produzida no Brasil na era pós-Internet. Trata-se de uma rede (“net”) interminável, que demanda intenso esforço de pesquisa do próprio leitor, talvez nunca antes tão incluído em um texto literário. A autora não pavimenta o caminho desse leitor; entrega-lhe os dados para que ele vista sua luva e faça seus próprios lances: sua leitura.

Boa sorte, leitor!