Os sonetos de Camões: engenho e arte

Por Antônio Sérgio Bueno

Ilustração: Rubens Lima

1. O Classicismo

O Classicismo é o estilo de época que corresponde ao período histórico conhecido como Renascimento, no qual se manifesta a confiança no ser humano como sujeito de sua própria história. Nesse momento, houve uma série de conquistas de ordem prática:

• A invenção da bússola;

• A fabricação de armas de fogo;

• Os vidros de aumento usados em lunetas;

• A invenção dos tipos móveis da imprensa;

• A industrialização do ferro em altos fornos;

• As Grandes Navegações e os descobrimentos marítimos;

• O sistema heliocêntrico de Copérnico.

Especificamente no campo artístico, o que renasce com o Renascimento? Os grandes modelos artísticos clássicos gregos e latinos, sendo a Itália reconhecida como berço da arte renascentista. É em Florença que o arquiteto Filippo Brunelleschi (1377-1446) projeta o zimbório (cúpula, cobertura), inserindo as novas formas de arquitetura clássica em uma edificação gótica (estilo anterior). Na escultura, o corpo humano torna-se o principal tema. Basta o Davi (1504) de Michelangelo para exemplificar essa tendência antropocêntrica.

O processo por meio do qual se efetua essa retomada dos antigos modelos, especificamente na literatura, é conhecido como mimese, ou seja, imitação. Entretanto, essa imitação não é uma cópia servil, mas o aproveitamento, com alterações enriquecedoras, dos referidos modelos.

O grande modelo dos sonetos camonianos é o italiano Francesco Petrarca (1304-1374). Assim como Dante Alighieri (1265-1321) representa a plenitude e o esgotamento da visão de mundo medieval, Petrarca faz a transição entre a Idade Média e o Renascimento. Humanista fascinado pela Antiguidade, Petrarca revoluciona a poesia lírica ocidental. Basta uma estrofe para evidenciar a influência de Petrarca sobre Camões:

Petrarca:

Camões:

O tema é o mesmo, diferente é a maneira de se posicionar diante da amada. Petrarca concentra-se na acolhida dessa alma feminina, enquanto Camões fala do sentimento dessa alma, não se esquecendo de seus próprios sentimentos.

Mas quem trouxe da Itália para Portugal o chamado “doce estilo novo” (medida nova), ou seja, os versos decassílabos que comporiam os sonetos camonianos, foi o poeta português Sá de Miranda (1481-1558). O que se chama “medida velha” eram as redondilhas menores (versos de 5 sílabas métricas) e as redondilhas maiores (versos de 7 sílabas métricas). Sá de Miranda também exerceu influência, embora menor que a de Petrarca, nos sonetos camonianos. Como se vê a seguir:

Sá de Miranda:

Camões:

É evidente o tema comum aos dois sonetos: o conflito entre a Razão e o Amor (desejo), que se desencadeia dentro do próprio sujeito poético. Em ambos os sonetos, o sujeito vive o conflito e simplesmente assiste a ele. Entretanto, as estratégias de um e outro sujeito divergem. Em ambos há uma aparente vitória da Razão, como se pode notar em Sá Miranda: “[Razão] em fim vem o seu dia”. E também em Camões: “mas a razão, que a luta vence, enfim,”. No entanto, as conclusões são diferentes. A interrogação em Sá Miranda: “[...] Que farei quando tudo arde?”, e a formulação de que a Razão não é Razão, e sim “Inclinação que eu tenho contra mim”, em Camões.

Sá de Miranda legou a Camões também o ceticismo e o desengano diante das ilusões terrenas. Ele preparou o caminho para Camões, que alcançou total domínio da técnica do soneto e elevou o sentimento amoroso à sua mais alta expressão na poesia lírica de Língua Portuguesa.

2. Alguns sonetos paradigmáticos

Sabemos que a poesia lírica é a expressão poética das vivências emotivas de um eu, principalmente de sua experiência amorosa. Acreditamos que esta pequena amostra comentada de sonetos camonianos dê notícias satisfatórias da trajetória lírica do maior poeta português.

2.1.

O primeiro quarteto desse soneto, feito à imitação de Petrarca, fala do poder de sedução dos versos do eu lírico, capazes de despertar emoções em um coração que se mostrava insensível. O número “dois mil” é evidente hipérbole, reforçando a intensidade do efeito da palavra poética.

O segundo quarteto explicita a diversidade do conjunto de emoções contempladas pelo poema e, em última análise, suscitadas pela voz que diz “eu” no corpo do texto: delicadeza, ira, mágoa, ousadia e, principalmente, saudade (“pena ausente”).

O primeiro terceto, de certa forma, nega um verso do início (“por uns termos em si tão concertados”), o qual exalta a harmonia das palavras nesse soneto. No final, o sujeito poético reconhece as próprias limitações para compor (“cantar”)
o retrato (“gesto”) dessa musa. Em suas palavras, faltam-lhe “saber, engenho e arte”.

Os versos, todos decassílabos, apresentam um esquema de rima bastante frequente: abba, abba, cdc, cdc.

2.2.

Esse soneto se inspira no texto bíblico do Gênesis, que narra o engano de que foi vítima o pastor Jacó. Este havia feito um acordo com Labão, pai de duas filhas, a quem serviria em troca da mão de Raquel, a mais nova. Vencidos os sete anos combinados, Labão deu ao pastor a filha mais velha, Lia, exigindo que Jacó trabalhasse mais sete anos em troca da mão de Raquel, o que o pastor efetivamente começou a fazer, admitindo que serviria até mais, não fosse a exiguidade do tempo de vida. O soneto tematiza esse logro.

O primeiro quarteto revela a verdadeira prenda que Jacó buscava conquistar. O terceiro e quarto versos corrigem a afirmativa contida nos dois primeiros; a mesma estrutura lógica se repete no segundo quarteto. Os dois versos iniciais desse segundo quarteto (quinto e sexto versos) falam da esperança que sustenta o pastor: conquistar Raquel; os versos sétimo e oitavo denunciam a artimanha de Labão: a troca da recompensa (Lia em lugar de Raquel). Nessa segunda estrofe está presente o reincidente motivo do olhar: ver o objeto do desejo.

Os dois tercetos finais mostram a reação do pastor diante da trapaça de que foi vítima. O amor de Jacó por Raquel é tão grande que o pastor inicia nova etapa de sete anos de trabalho para receber, enfim, sua amada. A última estrofe alcança extraordinário efeito lírico, ao revelar, de forma comovente, a razão pela qual o pastor não se sujeitaria à nova trapaça do patrão: a vida é curta demais para a imensidão do amor que sentia por sua “pastora” (Raquel). Essa poesia “pastoril” se ampliou no Arcadismo, que se afirmou no século XVIII.

Nesse soneto há uma alteração de estrutura rímica em relação ao anterior: abbc, abbc, cde, cde.

2.3.

Esse soneto é considerado pela crítica literária o mais completo exemplo de influência do platonismo na lírica camoniana. De tanto pensar na amada, o sujeito poético confunde-se com ela, como está dito no primeiro quarteto. No segundo quarteto, o primeiro verso reafirma a transformação da alma do amador no objeto amado; aliás, sujeito e objeto desaparecem como tais. O corpo e a alma também estão ligados de tal forma que esse corpo nada mais precisa desejar.

Curiosamente, a segunda parte do poema, composta pelos dois tercetos, inicia-se com a conjunção adversativa “mas” e indica um caminho ideológico oposto ao dos dois quartetos e que pode ser resumido desta maneira: assim como a alma do amador mistura-se à forma da amada, o sujeito poético assimila o conceito abstrato (“puro amor”) ao da matéria, que participará da realização amorosa, não podendo ser, portanto, anulada. Esse soneto termina falando do desejo humano que também aspira a realizar-se materialmente. O esquema das rimas, nesse soneto,
é elaborado da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.

2.4.

Esse soneto é revelador de uma postura cavalheiresca do sujeito poético diante de uma dama inacessível. Apesar da forma soneto (nova, para a época), o tratamento dado ao tema amor pertence à tradição do amor cortês, conhecido como vassalagem amorosa. O homem se coloca voluntariamente como servo da mulher, no plano amoroso. Essa tradição tem seu início no sul da França e celebra a dama que domina (daí a palavra “dona”) todos os pensamentos de seu amante, que assume uma postura de contemplação devota.

No primeiro quarteto, o eu lírico atribui tamanho valor aos olhos da amada que o preço de contemplá-los é perder a própria vista. E se tal não ocorre, o contemplador está em dívida com o objeto de sua contemplação. No segundo quarteto e no primeiro terceto, o sujeito poético afirma que deu à amada mais que seus próprios olhos; deu-lhe a esperança, a alma,
a vida, tudo enfim. Na última estrofe, em brilhante galanteio, a voz poética exprime toda sua felicidade em dar à amada tudo o que tem, e o último verso, notável chave de ouro paradoxal, diz que, quanto mais tributo paga ao amor por ela, mais aumenta a dívida amorosa do amante.

O esquema de rimas está organizado da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.

2.5.

Esse soneto é tão atual que consegue sintetizar admiravelmente, no plano poético, o pensamento do filósofo contemporâneo André Comte–Sponville, em seu brilhante livro A felicidade, desesperadamente, publicado no início do século XXI.

O primeiro quarteto denuncia as manobras do Amor (vale lembrar que amor com “A” maiúsculo representa Eros, o deus grego do amor) contra o amante. Em belo paradoxo, o eu lírico diz ser impossível ao Amor tirar-lhe as esperanças, já que ele não mais as tem. O citado filósofo francês vê na esperança a grande causa do sofrimento humano, devido às frustrações que dela decorrem.
Eis algumas frases de Comte–Sponville que se aplicam ao soneto que estamos comentando:

A segunda estrofe trata da insegurança de quem ama, embora o eu lírico diga não temer “mudanças” nem “contrastes”.
O amante é visto como um barco perdido em um mar feroz.

As duas últimas estrofes, entretanto, anunciam uma cilada do Amor, que coloca no coração do sujeito poético um desejo indefinível e estranho, motivo dos dois belos versos finais do soneto. Na verdade, trata-se do desejo amoroso, que nasce da falta, daí o sofrimento. Voltando ao filósofo francês: “[...] quando você diz eu te amo, isso significa você me falta e, portanto, eu te quero”13. Será preciso aprender a “amar o que não lhe falta”14, mas isso não interessa ao soneto camoniano, que conta justamente a dor de amar.

As rimas estão elaboradas da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.

2.6.

A antítese é figura recorrente nos sonetos camonianos e abre o primeiro quarteto: “triste e leda (contente)”. A madrugada é personificada como testemunha de uma dolorosa separação entre dois amantes. Tanto o cenário quanto o tempo são muito ativos. Outra oposição, que aparece no segundo quarteto, dá-se entre a luz da madrugada e a soturna, cruel separação. Essa dor acentua-se na hipérbole, que se configura na terceira estrofe:
o rio de lágrimas, reforçada pelos adjetivos “grande” e “largo”.

A mágoa que permeia as palavras dos amantes é tão grande, que tem o poder paradoxal de esfriar o fogo (do inferno)
e aliviar o tormento das almas condenadas. Quanto maior a dor do amante, maior o alívio e o consolo de quem lê suas palavras.

Faz lembrar o mito de Orfeu, segundo o qual a personagem principal, buscando resgatar sua amada Eurídice dos infernos, tangia a cítara e cantava de modo tão comovente que atenuava o sofrimento dos condenados às penas do inferno.

O esquema das rimas é elaborado da seguinte forma: abba, abba, cdc, dcd.

2.7.

O tema desse soneto é a metamorfose, outro tópico temático reincidente nos sonetos camonianos. Só no primeiro quarteto, o verbo “mudar” aparece quatro vezes, e uma,
o nome “mudança”. A temática de mudanças externas (tempos) e internas (vontades) vem de Heráclito, para quem a existência é constituída por contradições contínuas.

A segunda estrofe articula-se no jogo antitético mal e mágoas versus bem e saudade: a saudade é uma espécie de paixão da memória, presença obsessiva na lírica camoniana.

O primeiro terceto traz uma visão pessimista do mundo, que pode ser traduzida nestes termos: depois da tempestade vem a bonança; mas depois da bonança, volta a tempestade. Depois da “neve fria” vem o “verde mato”; mas depois do “doce canto” vem o “choro”.

O mais surpreendente fica sempre para a última estrofe: uma mudança no próprio processo de mudança: “que não muda já como soía (costumava)”. Esse verso final faz aflorar um dos temas mais marcantes da lírica de Camões:
o desconcerto do mundo.

A elaboração do esquema de rimas segue a seguinte forma: abba, abba, cdc, dcd.

2.8.

Nesse soneto, Camões atingiu um dos momentos mais altos de toda a poesia da Língua Portuguesa. Dificilmente se encontrará uma síntese tão perfeita das contradições internas do sentimento amoroso.

Lendo-se com cuidado esse soneto, são percebidos dois movimentos: as três primeiras estrofes trazem uma sequência de paradoxos que traduzem a natureza contraditória do amor. Se a antítese mostra um repouso entre dois termos opostos (não é o caso desse soneto),
o paradoxo encena uma tensão (é o caso desse soneto).
O paradoxo é ilógico, a antítese é lógica. A última estrofe é pura perplexidade, traduzida pelo ponto de interrogação que conclui o soneto.

Tal composição poética imita a construção paradoxal de outro soneto de Petrarca que se inicia por este quarteto:

A organização das rimas é realizada da seguinte forma: abba, abba, cdc, dcd.

2.9.

Esse é um dos sonetos dedicados a Dinamene, que seria uma jovem chinesa morta em um naufrágio. Mas Dinamene é também o nome de uma das nereidas, ninfas do mar.

Na primeira estrofe, a voz poética fala de Dinamene como uma visão, fruto da imaginação e do sonho, reconhecendo que essa figura feminina foi sonho, mesmo enquanto viva.
Na segunda estrofe, em pleno sonho, a visão escapa do amante.
Essa é uma cena recorrente em pesadelos, muito aproveitada inclusive em filmes: alguém buscando desesperadamente outrem, que se afasta inexoravelmente.

Na terceira estrofe, o eu lírico brada pela presença da amada, que não pode (ou não quer) atender à sua súplica. Na quarta estrofe, em magnífico achado poético, o eu lírico acorda no meio da pronúncia do nome da amada, dividindo-se em duas partes: Dina (também uma forma poética da palavra “digna”) e Mene. No lirismo camoniano de linhagem platônica, a amada não se corporifica. O amor mostra-se como ideia. O verdadeiro amor é o amor do amor. Amar, verbo intransitivo.

O esquema das rimas é elaborado da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.

2.10.

Esse é, certamente, o mais trágico dos sonetos camonianos. As três primeiras estrofes sustentam o mesmo impulso de maldição voltada para o dia do nascimento do sujeito poético.

O primeiro quarteto apresenta tom imperativo (os verbos estão no imperativo afirmativo e negativo), uma imprecação para que esse malfadado dia desapareça para sempre. No final dessa e nas duas estrofes subsequentes, a voz poética amaldiçoa o eventual retorno desse dia (concepção circular do tempo) com o escurecimento do sol, perplexidade, terror, confusão e outros sinais do fim do mundo. Na última estrofe, dá-se a revelação da razão de toda essa cena catastrófica: “que este dia deitou ao mundo a vida / mais desgraçada que jamais se viu!”.

A dramaticidade desse soneto talvez não encontre similitude na poesia em Língua Portuguesa. Só nos ocorre um outro exemplo na poesia romântica brasileira: o poema “I-Juca Pirama”, na passagem em que o velho índio tupi amaldiçoa seu filho, ao entender equivocadamente o pranto deste (no momento em que seria sacrificado) como covardia diante da morte:

O esquema de rimas é: abba, abba, cde, cde.

2.11.

Esse soneto explora uma das referências básicas da poesia clássica, maneirista e barroca: a mitologia greco-latina.
Trata-se da narrativa de cenas alegóricas. A alegoria é a exposição de um pensamento sob forma narrativa, uma fabulação. As ninfas são divindades secundárias femininas que presidem a reprodução, uma força fecundadora.

Na primeira estrofe, a ninfa Sílvia colhia flores amarelas numa “árvore sombria”. Na segunda estrofe, Cupido (deus do amor) vem dormir sua sesta à sombra dessa árvore e pendura sua aljava de setas em um ramo. No primeiro terceto, a ninfa rouba as setas, as quais passam a representar a força de seu próprio olhar, que fere os pastores. O único que escapa da ameaça dos olhos da ninfa é o sujeito poético, para o qual essa morte por amor significa a própria vida. Percebe-se que Sílvia toma o lugar do próprio Cupido na arte da sedução, despertando nos pastores a paixão amorosa. Os dois versos finais trazem uma solene advertência feita pela voz poética aos demais pastores: o perigo da sedução feminina, que suscita a perigosa paixão.

Esquema das rimas: abba, abba, cde, cde.

2.12.

A escolha desse soneto para nosso comentário deve-se ao uso do espaço natural como reflexo dos estados de alma do eu lírico.

No primeiro quarteto, as águas cristalinas refletem
“ao natural” os “alegres campos”. Trata-se de uma verdadeira pintura com palavras, traduzindo o lema latino ut pictura poesis. Essa primeira estrofe é uma expressão do bucolismo, que reaparecerá obsessivamente no Arcadismo do século XVIII.

A segunda estrofe marca uma transição, porque nela já se faz uma referência ao “mal” do eu lírico e os “ásperos penedos” anunciam suas dores.

Os tercetos conclusivos exibem o sofrimento do sujeito poético. O primeiro mostra que a alegria da natureza não contamina o eu lírico, que reage espalhando nela os sinais de sua dor.

A expressão “concerto desigual” (segunda estrofe) é paradoxal, já que concerto significa harmonia, com a qual não combina o adjetivo “desigual”. A visão da natureza será afetada pelo mal de amor (“saudades de meu bem”) sentido pelo sujeito poético.

O esquema das rimas é elaborado da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.

2.13.

Esse soneto é um bom exemplo de exploração poética da metalinguagem, ou seja, comenta a função dos próprios versos. Os “suspiros” poéticos invocados no primeiro verso do soneto são as palavras escolhidas pelo sujeito lírico para falar de sua própria experiência diante do amor e da fortuna. O segundo verso da primeira estrofe é um paradoxo: tristeza / leda (alegre). O rio Lete ou Letes, na mitologia grega, conduz a alma para o reino dos mortos.

Na segunda estrofe, configura-se claramente o sentido de advertência presente nos versos que o eu lírico deixa para a posteridade. Essa preocupação com os outros, potenciais vítimas do amor e da fortuna, formula-se na terceira estrofe. A forma verbal “dizei-lhe” (quarta estrofe) dirige-se aos próprios versos do poeta, e o conteúdo da advertência encerra-se nos dois versos lapidares com que se finaliza o soneto: a fortuna é instável e o amor é enganoso.

3. Conclusão

Não é tão simples classificar o estilo de época dos sonetos de Camões. Se o Classicismo é uma exaltação da dignidade do homem, uma espécie de otimismo antropocêntrico, vale reconhecer que boa parte da produção lírica de Camões apresenta, antes, uma visão pessimista do mundo. Por isso, a crítica literária mais recente prefere situar muitos desses sonetos em uma estética maneirista, que precede o estilo barroco do século XVIII. Nas palavras do crítico Antonio Medina Rodrigues: “Dizer que os sonetos camonianos são maneiristas é a classificação mais acertada, porque os traços maneiristas trazem o sinal de uma crise, em que o pessimismo e o desencanto começam a minar o otimismo do Renascimento.”25

Por outro lado, é preciso reconhecer que Camões, um humanista renascentista, aproveitou de Platão o idealismo, sistema filosófico que enfatiza a prevalência das ideias sobre o mundo material. Platão estabelece uma oposição entre o mundo sensível e o mundo inteligível. As pessoas concretas movem-se no mundo sensível, que é apenas cópia imperfeita do mundo das ideias, que existe plenamente apenas na esfera inteligível, ideal. Para o Platonismo, as experiências deste mundo terrestre são enganosas (cópias imperfeitas). Só no trato das ideias é que se pode atingir a verdade. Uma beleza deste mundo só consegue nos comover porque sentimos saudade (a mencionada paixão da memória) de uma beleza perfeita situada no plano inteligível. Portanto,
o Platonismo, que sustenta vários sonetos de Camões, autoriza-nos a aceitar também sua classificação de clássico-renascentista.

Já se disse que a obra poética de Camões vale uma literatura inteira e que ele assimilou e expressou poderosamente todo o espírito da renascença portuguesa. Realmente ele é um poeta-síntese: deu continuidade a uma tradição local medieval em suas redondilhas e exercitou a medida nova vinda da Itália em seus sonetos. Não se pode esquecer da extraordinária vivência de Camões, a quem não “[...] falta na vida honesto estudo / Com longa experiência misturado,”26. Numa mão a pena, noutra a espada, um poeta de corpo (sentidos) e alma (espiritualidade).

O seu grande tema é a exaltação dos tormentos do amor, diante dos quais é nítida sua propensão melancólica: “Pois meus olhos não cansam de chorar / Tristezas, que não cansam de cansar-me,”27. Camões realiza uma verdadeira microscopia do sentimento amoroso, do qual empreende sutil análise psicológica. Sua poesia exprime o conflito entre a herança platônica e os desejos carnais que se impõem na visão de mundo renascentista. Daí o angustiante exame de consciência do eu lírico e a tensão poética que emana de seus sonetos.

Com base no grande crítico português Fidelino de Figueiredo, podemos sintetizar da seguinte maneira o legado lírico de Camões:

• o seu soneto é conceituoso, ou seja, a conclusão sutil e elegante contida na estrofe final é preparada pelas três estrofes anteriores. À clareza elegante da forma correspondem ideias também precisas e elegantes.

• a tradução de um sentimento paradoxal por meio de paradoxos verbais sofisticados.

• os retratos idealizados da mulher são verdadeiras pinturas verbais em tons variados.28