O Classicismo é o estilo de época que corresponde ao período histórico conhecido como Renascimento, no qual se manifesta a confiança no ser humano como sujeito de sua própria história. Nesse momento, houve uma série de conquistas de ordem prática:
• A invenção da bússola;
• A fabricação de armas de fogo;
• Os vidros de aumento usados em lunetas;
• A invenção dos tipos móveis da imprensa;
• A industrialização do ferro em altos fornos;
• As Grandes Navegações e os descobrimentos marítimos;
• O sistema heliocêntrico de Copérnico.
Especificamente no campo artístico, o que renasce com o Renascimento? Os grandes modelos artísticos clássicos gregos e latinos, sendo a Itália reconhecida como berço da arte renascentista. É em Florença que o arquiteto Filippo Brunelleschi (1377-1446) projeta o zimbório (cúpula, cobertura), inserindo as novas formas de arquitetura clássica em uma edificação gótica (estilo anterior). Na escultura, o corpo humano torna-se o principal tema. Basta o Davi (1504) de Michelangelo para exemplificar essa tendência antropocêntrica.
O processo por meio do qual se efetua essa retomada dos antigos modelos, especificamente na literatura, é conhecido como mimese, ou seja, imitação. Entretanto, essa imitação não é uma cópia servil, mas o aproveitamento, com alterações enriquecedoras, dos referidos modelos.
O grande modelo dos sonetos camonianos é o italiano Francesco Petrarca (1304-1374). Assim como Dante Alighieri (1265-1321) representa a plenitude e o esgotamento da visão de mundo medieval, Petrarca faz a transição entre a Idade Média e o Renascimento. Humanista fascinado pela Antiguidade, Petrarca revoluciona a poesia lírica ocidental. Basta uma estrofe para evidenciar a influência de Petrarca sobre Camões:
Petrarca:
“A alma minha gentil que agora parte
Tão cedo deste mundo à outra vida,
Terá certo no céu grata acolhida,
Indo habitar sua mais beata parte.”1
Camões:
“Alma minha gentil que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.”2
O tema é o mesmo, diferente é a maneira de se posicionar diante da amada. Petrarca concentra-se na acolhida dessa alma feminina, enquanto Camões fala do sentimento dessa alma, não se esquecendo de seus próprios sentimentos.
Mas quem trouxe da Itália para Portugal o chamado “doce estilo novo” (medida nova), ou seja, os versos decassílabos que comporiam os sonetos camonianos, foi o poeta português Sá de Miranda (1481-1558). O que se chama “medida velha” eram as redondilhas menores (versos de 5 sílabas métricas) e as redondilhas maiores (versos de 7 sílabas métricas). Sá de Miranda também exerceu influência, embora menor que a de Petrarca, nos sonetos camonianos. Como se vê a seguir:
Sá de Miranda:
Soneto 8
Desarrezoado amor, dentro em meu peito,
Tem guerra com a razão. Amor, que jaz
I já de muitos dias, manda e faz
Tudo o que quer, a torto e a direito
Não espera razões, tudo é despeito,
Tudo soberba e força, faz, desfaz,
Sem respeito nenhum, e quando em paz
Cuidais que sois, então tudo é desfeito.
Doutra parte a razão tempos espia,
Espia ocasiões de tarde em tarde,
Que ajunta o tempo: em fim vem o seu dia.
Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata treições, que não confia
Nem dos seus. Que farei quando tudo arde?3
Camões:
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!
Novo modo de morte, e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor!
Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.
Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.4
É evidente o tema comum aos dois sonetos: o conflito entre a Razão e o Amor (desejo), que se desencadeia dentro do próprio sujeito poético. Em ambos os sonetos, o sujeito vive o conflito e simplesmente assiste a ele. Entretanto, as estratégias de um e outro sujeito divergem. Em ambos há uma aparente vitória da Razão, como se pode notar em Sá Miranda: “[Razão] em fim vem o seu dia”. E também em Camões: “mas a razão, que a luta vence, enfim,”. No entanto, as conclusões são diferentes. A interrogação em Sá Miranda: “[...] Que farei quando tudo arde?”, e a formulação de que a Razão não é Razão, e sim “Inclinação que eu tenho contra mim”, em Camões.
Sá de Miranda legou a Camões também o ceticismo e o desengano diante das ilusões terrenas. Ele preparou o caminho para Camões, que alcançou total domínio da técnica do soneto e elevou o sentimento amoroso à sua mais alta expressão na poesia lírica de Língua Portuguesa.
Sabemos que a poesia lírica é a expressão poética das vivências emotivas de um eu, principalmente de sua experiência amorosa. Acreditamos que esta pequena amostra comentada de sonetos camonianos dê notícias satisfatórias da trajetória lírica do maior poeta português.
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.5
O primeiro quarteto desse soneto, feito à imitação de Petrarca, fala do poder de sedução dos versos do eu lírico, capazes de despertar emoções em um coração que se mostrava insensível. O número “dois mil” é evidente hipérbole, reforçando a intensidade do efeito da palavra poética.
O segundo quarteto explicita a diversidade do conjunto de emoções contempladas pelo poema e, em última análise, suscitadas pela voz que diz “eu” no corpo do texto: delicadeza, ira, mágoa, ousadia e, principalmente, saudade (“pena ausente”).
O primeiro terceto, de certa forma, nega um verso do início (“por uns termos em si tão concertados”), o qual
exalta a harmonia das palavras nesse soneto. No final, o sujeito poético reconhece as próprias limitações
para compor (“cantar”)
o retrato (“gesto”) dessa musa. Em suas palavras, faltam-lhe “saber, engenho e
arte”.
Os versos, todos decassílabos, apresentam um esquema de rima bastante frequente: abba, abba, cdc, cdc.
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta vida!6
Esse soneto se inspira no texto bíblico do Gênesis, que narra o engano de que foi vítima o pastor Jacó. Este havia feito um acordo com Labão, pai de duas filhas, a quem serviria em troca da mão de Raquel, a mais nova. Vencidos os sete anos combinados, Labão deu ao pastor a filha mais velha, Lia, exigindo que Jacó trabalhasse mais sete anos em troca da mão de Raquel, o que o pastor efetivamente começou a fazer, admitindo que serviria até mais, não fosse a exiguidade do tempo de vida. O soneto tematiza esse logro.
O primeiro quarteto revela a verdadeira prenda que Jacó buscava conquistar. O terceiro e quarto versos corrigem a afirmativa contida nos dois primeiros; a mesma estrutura lógica se repete no segundo quarteto. Os dois versos iniciais desse segundo quarteto (quinto e sexto versos) falam da esperança que sustenta o pastor: conquistar Raquel; os versos sétimo e oitavo denunciam a artimanha de Labão: a troca da recompensa (Lia em lugar de Raquel). Nessa segunda estrofe está presente o reincidente motivo do olhar: ver o objeto do desejo.
Os dois tercetos finais mostram a reação do pastor diante da trapaça de que foi vítima. O amor de Jacó por Raquel é tão grande que o pastor inicia nova etapa de sete anos de trabalho para receber, enfim, sua amada. A última estrofe alcança extraordinário efeito lírico, ao revelar, de forma comovente, a razão pela qual o pastor não se sujeitaria à nova trapaça do patrão: a vida é curta demais para a imensidão do amor que sentia por sua “pastora” (Raquel). Essa poesia “pastoril” se ampliou no Arcadismo, que se afirmou no século XVIII.
Nesse soneto há uma alteração de estrutura rímica em relação ao anterior: abbc, abbc, cde, cde.
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim, coa alma minha se conforma.
Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.7
Esse soneto é considerado pela crítica literária o mais completo exemplo de influência do platonismo na lírica camoniana. De tanto pensar na amada, o sujeito poético confunde-se com ela, como está dito no primeiro quarteto. No segundo quarteto, o primeiro verso reafirma a transformação da alma do amador no objeto amado; aliás, sujeito e objeto desaparecem como tais. O corpo e a alma também estão ligados de tal forma que esse corpo nada mais precisa desejar.
Curiosamente, a segunda parte do poema, composta pelos dois tercetos, inicia-se com a conjunção adversativa
“mas” e indica um caminho ideológico oposto ao dos dois quartetos e que pode ser resumido desta maneira:
assim como a alma do amador mistura-se à forma da amada, o sujeito poético assimila o conceito abstrato
(“puro amor”) ao da matéria, que participará da realização amorosa, não podendo ser, portanto, anulada. Esse
soneto termina falando do desejo humano que também aspira a realizar-se materialmente. O esquema das rimas,
nesse soneto,
é elaborado da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.
Quem vê, Senhora, claro e manifesto Assim que a vida e alma e esperança,
O lindo ser de vossos olhos belos, E tudo quanto tenho tudo é vosso;
Se não perder a vista só com vê-los, E o proveito disso eu só o levo.
Já não paga o que deve a vosso gesto.
Porque é tamanha bem-aventurança
Este me parecia preço honesto; O dar-vos quanto tenho e quanto posso
Mas eu, por de vantagem merecê-los, Que quanto mais vos pago, mais vos devo.8
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Donde já me não fica mais de resto.
Esse soneto é revelador de uma postura cavalheiresca do sujeito poético diante de uma dama inacessível. Apesar da forma soneto (nova, para a época), o tratamento dado ao tema amor pertence à tradição do amor cortês, conhecido como vassalagem amorosa. O homem se coloca voluntariamente como servo da mulher, no plano amoroso. Essa tradição tem seu início no sul da França e celebra a dama que domina (daí a palavra “dona”) todos os pensamentos de seu amante, que assume uma postura de contemplação devota.
No primeiro quarteto, o eu lírico atribui tamanho valor aos olhos da amada que o preço de contemplá-los é
perder a própria vista. E se tal não ocorre, o contemplador está em dívida com o objeto de sua contemplação.
No segundo quarteto e no primeiro terceto, o sujeito poético afirma que deu à amada mais que seus próprios
olhos; deu-lhe a esperança, a alma,
a vida, tudo enfim. Na última estrofe, em brilhante galanteio, a
voz poética exprime toda sua felicidade em dar à amada tudo o que tem, e o último verso, notável chave de
ouro paradoxal, diz que, quanto mais tributo paga ao amor por ela, mais aumenta a dívida amorosa do amante.
O esquema de rimas está organizado da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.
Busque Amor novas artes, novo engenho,
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê;
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e doí não sei por quê.9
Esse soneto é tão atual que consegue sintetizar admiravelmente, no plano poético, o pensamento do filósofo contemporâneo André Comte–Sponville, em seu brilhante livro A felicidade, desesperadamente, publicado no início do século XXI.
O primeiro quarteto denuncia as manobras do Amor (vale lembrar que amor com “A” maiúsculo representa Eros, o
deus grego do amor) contra o amante. Em belo paradoxo, o eu lírico diz ser impossível ao Amor tirar-lhe as
esperanças, já que ele não mais as tem. O citado filósofo francês vê na esperança a grande causa do
sofrimento humano, devido às frustrações que dela decorrem.
Eis algumas frases de Comte–Sponville que
se aplicam ao soneto que estamos comentando:
“Uma esperança é um desejo cuja satisfação não depende de nós.”10
“Esperar é desejar sem poder.”11
“[...] a felicidade de quem não tem mais nada a esperar. Por que está perdido? Não, porque não tem mais
nada
a perder.” 12
A segunda estrofe trata da insegurança de quem ama, embora o eu lírico diga não temer “mudanças” nem
“contrastes”.
O amante é visto como um barco perdido em um mar feroz.
As duas últimas estrofes, entretanto, anunciam uma cilada do Amor, que coloca no coração do sujeito poético um desejo indefinível e estranho, motivo dos dois belos versos finais do soneto. Na verdade, trata-se do desejo amoroso, que nasce da falta, daí o sofrimento. Voltando ao filósofo francês: “[...] quando você diz eu te amo, isso significa você me falta e, portanto, eu te quero”13. Será preciso aprender a “amar o que não lhe falta”14, mas isso não interessa ao soneto camoniano, que conta justamente a dor de amar.
As rimas estão elaboradas da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas,
Se acrescentaram em grande e largo rio.
Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar a fogo frio
E dar descanso às almas condenadas.15
A antítese é figura recorrente nos sonetos camonianos e abre o primeiro quarteto: “triste e leda (contente)”.
A madrugada é personificada como testemunha de uma dolorosa separação entre dois amantes. Tanto o cenário
quanto o tempo são muito ativos. Outra oposição, que aparece no segundo quarteto, dá-se entre a luz da
madrugada e a soturna, cruel separação. Essa dor acentua-se na hipérbole, que se configura na terceira
estrofe:
o rio de lágrimas, reforçada pelos adjetivos “grande” e “largo”.
A mágoa que permeia as palavras dos amantes é tão grande, que tem o poder paradoxal de esfriar o fogo (do
inferno)
e aliviar o tormento das almas condenadas. Quanto maior a dor do amante, maior o alívio e o
consolo de quem lê suas palavras.
Faz lembrar o mito de Orfeu, segundo o qual a personagem principal, buscando resgatar sua amada Eurídice dos infernos, tangia a cítara e cantava de modo tão comovente que atenuava o sofrimento dos condenados às penas do inferno.
O esquema das rimas é elaborado da seguinte forma: abba, abba, cdc, dcd.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.16
O tema desse soneto é a metamorfose, outro tópico temático reincidente nos sonetos camonianos. Só no primeiro
quarteto, o verbo “mudar” aparece quatro vezes, e uma,
o nome “mudança”. A temática de mudanças
externas (tempos) e internas (vontades) vem de Heráclito, para quem a existência é constituída por
contradições contínuas.
A segunda estrofe articula-se no jogo antitético mal e mágoas versus bem e saudade: a saudade é uma espécie de paixão da memória, presença obsessiva na lírica camoniana.
O primeiro terceto traz uma visão pessimista do mundo, que pode ser traduzida nestes termos: depois da tempestade vem a bonança; mas depois da bonança, volta a tempestade. Depois da “neve fria” vem o “verde mato”; mas depois do “doce canto” vem o “choro”.
O mais surpreendente fica sempre para a última estrofe: uma mudança no próprio processo de mudança: “que não
muda já como soía (costumava)”. Esse verso final faz aflorar um dos temas mais marcantes da lírica de
Camões:
o desconcerto do mundo.
A elaboração do esquema de rimas segue a seguinte forma: abba, abba, cdc, dcd.
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?17
Nesse soneto, Camões atingiu um dos momentos mais altos de toda a poesia da Língua Portuguesa. Dificilmente se encontrará uma síntese tão perfeita das contradições internas do sentimento amoroso.
Lendo-se com cuidado esse soneto, são percebidos dois movimentos: as três primeiras estrofes trazem uma
sequência de paradoxos que traduzem a natureza contraditória do amor. Se a antítese mostra um repouso entre
dois termos opostos (não é o caso desse soneto),
o paradoxo encena uma tensão (é o caso desse soneto).
O paradoxo é ilógico, a antítese é lógica. A última estrofe é pura perplexidade, traduzida pelo ponto
de interrogação que conclui o soneto.
Tal composição poética imita a construção paradoxal de outro soneto de Petrarca que se inicia por este quarteto:
“Não tenho paz nem posso fazer guerra;
Temo e espero e do ardor ao gelo passo;
E voo para o céu e desço à terra;
E nada aperto e todo o mundo abraço.”18
A organização das rimas é realizada da seguinte forma: abba, abba, cdc, dcd.
Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquela alma me aparece
Que para mim foi sonho nesta via.
Lá numa soidade, onde estendida
A vista pelo campo desfalece,
Corro para ela; e ela então parece
Que mais de mim se alonga, compelida.
Brado: não me fujais, sombra benina!
Ela, os olho em mim cum brando pejo,
Como quem diz que já não pode ser,
Torna a fugir-me. E eu, gritando: Dina...
Antes que diga mene, acordo, e vejo
Que nem um breve engano posso ter.19
Esse é um dos sonetos dedicados a Dinamene, que seria uma jovem chinesa morta em um naufrágio. Mas Dinamene é também o nome de uma das nereidas, ninfas do mar.
Na primeira estrofe, a voz poética fala de Dinamene como uma visão, fruto da imaginação e do sonho,
reconhecendo que essa figura feminina foi sonho, mesmo enquanto viva.
Na segunda estrofe, em pleno
sonho, a visão escapa do amante.
Essa é uma cena recorrente em pesadelos, muito aproveitada inclusive
em filmes: alguém buscando desesperadamente outrem, que se afasta inexoravelmente.
Na terceira estrofe, o eu lírico brada pela presença da amada, que não pode (ou não quer) atender à sua súplica. Na quarta estrofe, em magnífico achado poético, o eu lírico acorda no meio da pronúncia do nome da amada, dividindo-se em duas partes: Dina (também uma forma poética da palavra “digna”) e Mene. No lirismo camoniano de linhagem platônica, a amada não se corporifica. O amor mostra-se como ideia. O verdadeiro amor é o amor do amor. Amar, verbo intransitivo.
O esquema das rimas é elaborado da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!20
Esse é, certamente, o mais trágico dos sonetos camonianos. As três primeiras estrofes sustentam o mesmo impulso de maldição voltada para o dia do nascimento do sujeito poético.
O primeiro quarteto apresenta tom imperativo (os verbos estão no imperativo afirmativo e negativo), uma imprecação para que esse malfadado dia desapareça para sempre. No final dessa e nas duas estrofes subsequentes, a voz poética amaldiçoa o eventual retorno desse dia (concepção circular do tempo) com o escurecimento do sol, perplexidade, terror, confusão e outros sinais do fim do mundo. Na última estrofe, dá-se a revelação da razão de toda essa cena catastrófica: “que este dia deitou ao mundo a vida / mais desgraçada que jamais se viu!”.
A dramaticidade desse soneto talvez não encontre similitude na poesia em Língua Portuguesa. Só nos ocorre um outro exemplo na poesia romântica brasileira: o poema “I-Juca Pirama”, na passagem em que o velho índio tupi amaldiçoa seu filho, ao entender equivocadamente o pranto deste (no momento em que seria sacrificado) como covardia diante da morte:
“Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos.
Padecendo os
maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.”21
O esquema de rimas é: abba, abba, cde, cde.
Num bosque que das Ninfas se habitava,
Sílvia, ninfa linda, andava um dia;
E, subida numa árvore sombria,
As amarelas flores apanhava.
Cupido, que ali sempre costumava
A vir passar a sesta à sombra fria,
Num ramo o arco e setas que trazia,
Antes que adormecesse, pendurava.
A ninfa, como idôneo tempo vira
Para tamanha empresa, não dilata,
Mas com as armas foge ao Moço esquivo.
As setas traz nos olhos, com que tira.
– Ó pastores! Fugi, que a todos mata,
Se não a mim, que de matar-me vivo.22
Esse soneto explora uma das referências básicas da poesia clássica, maneirista e barroca: a mitologia
greco-latina.
Trata-se da narrativa de cenas alegóricas. A alegoria é a exposição de um pensamento sob
forma narrativa, uma fabulação. As ninfas são divindades secundárias femininas que presidem a reprodução,
uma força fecundadora.
Na primeira estrofe, a ninfa Sílvia colhia flores amarelas numa “árvore sombria”. Na segunda estrofe, Cupido (deus do amor) vem dormir sua sesta à sombra dessa árvore e pendura sua aljava de setas em um ramo. No primeiro terceto, a ninfa rouba as setas, as quais passam a representar a força de seu próprio olhar, que fere os pastores. O único que escapa da ameaça dos olhos da ninfa é o sujeito poético, para o qual essa morte por amor significa a própria vida. Percebe-se que Sílvia toma o lugar do próprio Cupido na arte da sedução, despertando nos pastores a paixão amorosa. Os dois versos finais trazem uma solene advertência feita pela voz poética aos demais pastores: o perigo da sedução feminina, que suscita a perigosa paixão.
Esquema das rimas: abba, abba, cde, cde.
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;
Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos em concerto desigual:
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.
E, pois me já não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas
Nem águas que correndo alegres vêm.
Semearei em vós lembranças tristes,
Regando-vos com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.23
A escolha desse soneto para nosso comentário deve-se ao uso do espaço natural como reflexo dos estados de alma do eu lírico.
No primeiro quarteto, as águas cristalinas refletem
“ao natural” os “alegres campos”. Trata-se de uma
verdadeira pintura com palavras, traduzindo o lema latino ut pictura poesis. Essa primeira estrofe é
uma expressão do bucolismo, que reaparecerá obsessivamente no Arcadismo do século XVIII.
A segunda estrofe marca uma transição, porque nela já se faz uma referência ao “mal” do eu lírico e os “ásperos penedos” anunciam suas dores.
Os tercetos conclusivos exibem o sofrimento do sujeito poético. O primeiro mostra que a alegria da natureza não contamina o eu lírico, que reage espalhando nela os sinais de sua dor.
A expressão “concerto desigual” (segunda estrofe) é paradoxal, já que concerto significa harmonia, com a qual não combina o adjetivo “desigual”. A visão da natureza será afetada pelo mal de amor (“saudades de meu bem”) sentido pelo sujeito poético.
O esquema das rimas é elaborado da seguinte forma: abba, abba, cde, cde.
Suspiros inflamados, que cantais
A tristeza com que eu vivi tão ledo,
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Lete vos percais.
Escritos para sempre já ficais
Onde vos mostrarão todos co dedo,
Como exemplo de males; que eu concedo
Que para aviso de outros estejais.
Em quem, pois, virdes falsas esperanças
De Amor e da Fortuna, cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças,
Dizei-lhe que os servistes muitos anos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E quem em Amor não há senão enganos.24
Esse soneto é um bom exemplo de exploração poética da metalinguagem, ou seja, comenta a função dos próprios versos. Os “suspiros” poéticos invocados no primeiro verso do soneto são as palavras escolhidas pelo sujeito lírico para falar de sua própria experiência diante do amor e da fortuna. O segundo verso da primeira estrofe é um paradoxo: tristeza / leda (alegre). O rio Lete ou Letes, na mitologia grega, conduz a alma para o reino dos mortos.
Na segunda estrofe, configura-se claramente o sentido de advertência presente nos versos que o eu lírico deixa para a posteridade. Essa preocupação com os outros, potenciais vítimas do amor e da fortuna, formula-se na terceira estrofe. A forma verbal “dizei-lhe” (quarta estrofe) dirige-se aos próprios versos do poeta, e o conteúdo da advertência encerra-se nos dois versos lapidares com que se finaliza o soneto: a fortuna é instável e o amor é enganoso.
Não é tão simples classificar o estilo de época dos sonetos de Camões. Se o Classicismo é uma exaltação da dignidade do homem, uma espécie de otimismo antropocêntrico, vale reconhecer que boa parte da produção lírica de Camões apresenta, antes, uma visão pessimista do mundo. Por isso, a crítica literária mais recente prefere situar muitos desses sonetos em uma estética maneirista, que precede o estilo barroco do século XVIII. Nas palavras do crítico Antonio Medina Rodrigues: “Dizer que os sonetos camonianos são maneiristas é a classificação mais acertada, porque os traços maneiristas trazem o sinal de uma crise, em que o pessimismo e o desencanto começam a minar o otimismo do Renascimento.”25
Por outro lado, é preciso reconhecer que Camões, um humanista renascentista, aproveitou de Platão o
idealismo, sistema filosófico que enfatiza a prevalência das ideias sobre o mundo material. Platão
estabelece uma oposição entre o mundo sensível e o mundo inteligível. As pessoas concretas movem-se no mundo
sensível, que é apenas cópia imperfeita do mundo das ideias, que existe plenamente apenas na esfera
inteligível, ideal. Para o Platonismo, as experiências deste mundo terrestre são enganosas (cópias
imperfeitas). Só no trato das ideias é que se pode atingir a verdade. Uma beleza deste mundo só consegue nos
comover porque sentimos saudade (a mencionada paixão da memória) de uma beleza perfeita situada no plano
inteligível. Portanto,
o Platonismo, que sustenta vários sonetos de Camões, autoriza-nos a aceitar
também sua classificação de clássico-renascentista.
Já se disse que a obra poética de Camões vale uma literatura inteira e que ele assimilou e expressou poderosamente todo o espírito da renascença portuguesa. Realmente ele é um poeta-síntese: deu continuidade a uma tradição local medieval em suas redondilhas e exercitou a medida nova vinda da Itália em seus sonetos. Não se pode esquecer da extraordinária vivência de Camões, a quem não “[...] falta na vida honesto estudo / Com longa experiência misturado,”26. Numa mão a pena, noutra a espada, um poeta de corpo (sentidos) e alma (espiritualidade).
O seu grande tema é a exaltação dos tormentos do amor, diante dos quais é nítida sua propensão melancólica: “Pois meus olhos não cansam de chorar / Tristezas, que não cansam de cansar-me,”27. Camões realiza uma verdadeira microscopia do sentimento amoroso, do qual empreende sutil análise psicológica. Sua poesia exprime o conflito entre a herança platônica e os desejos carnais que se impõem na visão de mundo renascentista. Daí o angustiante exame de consciência do eu lírico e a tensão poética que emana de seus sonetos.
Com base no grande crítico português Fidelino de Figueiredo, podemos sintetizar da seguinte maneira o legado lírico de Camões:
• o seu soneto é conceituoso, ou seja, a conclusão sutil e elegante contida na estrofe final é preparada pelas três estrofes anteriores. À clareza elegante da forma correspondem ideias também precisas e elegantes.
• a tradução de um sentimento paradoxal por meio de paradoxos verbais sofisticados.
• os retratos idealizados da mulher são verdadeiras pinturas verbais em tons variados.28