“E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil...”
(Álvaro de Campos)
Publicado em 1936, Angústia1 é considerado um dos romances mais experimentais e
densos de Graciliano Ramos. Para os leitores acostumados à secura extrema de São Bernardo (1934) e de Vidas
secas (1938), exemplos maiores da expressão econômica e essencial que consagrou o estilo do autor, a
narrativa de 1936 certamente parecerá excessiva.
O próprio Graciliano Ramos admitiu que seria preciso
retomar Angústia para cortar os seus excessos2. Como se sabe, o livro foi escrito em uma época
muito atribulada, que coincidiu com a prisão do escritor em Maceió (Alagoas), quando ocupava o cargo de
diretor da Instrução Pública, função que corresponde atualmente à de secretário de Estado
da Educação.
O episódio da prisão absurda, quase kafkiana3, que correu sem processo formal, não impediu a deportação do acusado, que viajou no porão de um navio para o Rio de Janeiro, onde ficou encarcerado no presídio da Ilha Grande. Na “caça às bruxas” desencadeada pela instalação do Estado Novo (a ditadura Vargas)4, Graciliano Ramos, como outros autores do período, foi acusado de filiação esquerdista, embora ainda não fosse vinculado oficialmente ao Partido Comunista (que não escapou de suas críticas, frise-se).
Em Memórias do Cárcere (1953), obra confessional em que dá testemunho dos dez meses passados na cadeia, faz várias referências a Angústia, “romance encrencado”, segundo suas palavras, que acabou publicado sem a devida revisão, haja vista o encarceramento inopinado5 e injusto. O romance terminado às pressas o persegue como um fantasma nas Memórias, como um verdadeiro complexo psíquico mal resolvido, espelhando curiosamente o seu tema, centrado nos tormentos interiores do narrador protagonista.
A insatisfação de Graciliano Ramos com seus romances sempre foi fato conhecido. Muito exigente e autocrítico, esteve sempre em busca da perfeição, que, para ele, coincidia com a escrita correta e sem atavios. A implicância com Angústia encontra eco na reserva também manifesta a Caetés, seu livro de estreia. São Bernardo e Vidas secas, achava-os toleráveis. Avesso a retóricas de qualquer tipo, optou sempre pela linguagem concisa, quase clássica, na acepção lata do termo: a justa adequação da palavra à coisa narrada, sem sobras, como pede o equilíbrio entre a emoção e a razão. Mais adepto do corte que do acréscimo, lia e relia suas frases à exaustão. Eliminava sempre e, se pudesse, como afirma Otto Maria Carpeaux6, em célebre estudo, eliminaria seus romances e o mundo. A desconfiança que nutria em relação à literatura, arma de protesto nem sempre eficaz, estendia-a ao semelhante e à sociedade como um todo, palco de relações injustas e dolorosas.
Ante o rigor da escrita ascética7, com vocação para a brevidade e a parcimônia dos
vocábulos, marca do estilo arduamente buscado, Angústia, livro não revisado e redigido em
circunstâncias desfavoráveis, não poderia mesmo agradar ao seu autor. Excessivo em muitos aspectos, segundo
expressão de Antonio Candido8, o romance destoa do despojamento de
São
Bernardo ou de Vidas secas. Entretanto, esse excesso é elaboração formal da mente atormentada do narrador de
primeira pessoa, que ocupa e absorve a narrativa. Em outros termos, tudo é narrado do ponto de vista de Luís
da Silva, jornalista e funcionário público às voltas com sua vida mesquinha e sua rotina massacrante.
A realidade circundante e os personagens só ganham vida em função da consciência angustiada de Luís que, no
primeiro plano, vê e apreende acontecimentos, lugares, coisas, pessoas de maneira deformada, expressionista,
misturando presente e passado, verdade e imaginação. O mundo objetivo se dilui no torvelinho do monólogo
interior, técnica do romance moderno utilizada, numa narrativa fragmentada, hesitante, permeada de dúvidas
e, não por acaso, sem divisão em capítulos.
O livro é, por assim dizer, feito de uma coleção de
fragmentos, de retalhos de impressões do presente misturadas a evocações do passado, em ritmo vertiginoso e,
não raro, delirante, que marca passo, repisando figuras e cenas que se repetem obsessivamente. Não estamos
longe de um narrador do tipo melancólico ou depressivo, com forte propensão à autodepreciação e ao
autoaniquilamento.
O personagem que está em cena torna-se a encarnação sensível da “angústia” do título, substantivo abstrato em estado puro, sentimento que preenche o romance inteiro. O leitor mal respira no ritmo quase ininterrupto da fala monologal do narrador, vez ou outra interrompida por diálogos, pequenas clareiras abertas em meio à consciência individual que tudo domina no limite do solipsismo9. No entanto, mesmo os diálogos aparecem como parte do registro ou da rememoração da mente angustiada. Há, muitas vezes, diálogos imaginados ou supostos, fazendo a narrativa emergir da introspecção absoluta.
“Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha.” (p. 129)
A atmosfera geral se aproxima, como ficou dito, de uma pintura expressionista, na qual cores e traços foram deformados pelo arbítrio criador. O que vemos é o que Luís da Silva vê num processo de crise existencial. Certas pinturas de Edvard Munch10, precursor do Expressionismo, poderiam ser evocadas como tradução visual do clima vivenciado pelo narrador e pelo leitor em Angústia, sobretudo a mais conhecida delas, O Grito:
Os excessos que tanto incomodaram Graciliano Ramos talvez se justifiquem pela natureza predominantemente subjetiva da narrativa, que se desenvolve no palco tormentoso de uma mente angustiada, inserida em um mundo desertado de sentido. A secura, marca do estilo de Graciliano Ramos, não seria adequada à representação do delirante mundo interior de Luís da Silva. Ainda que não deliberada, a filiação de Angústia ao universo expressionista, além de confirmar o aspecto vanguardista do romance, comprova o intento do autor de experimentar formas modernistas no âmbito de seu arraigado classicismo. Na mesma direção, a originalidade do romance afasta-o do dito regionalismo nordestino que dominava a ficção brasileira da época.
Avessa ao descritivismo pitoresco ou à narrativa de costumes, a obra de Graciliano Ramos jamais se deixou classificar com facilidade, repelindo rótulos dicotômicos. Embora se passe em Maceió, Angústia não é, de forma alguma, um romance regional, tendo seu foco na investigação profunda da alma humana escavada pela autoanálise meticulosa do narrador ensimesmado. Dialogando com as vanguardas do começo do século, a narrativa não deixa, ainda, de antecipar o futuro, constituindo uma espécie de romance existencialista “avant la lettre”11, fato que seu título só vem confirmar. O termo “angústia” ocuparia o centro dos diversos escritos da filosofia existencial, sendo condição por excelência do homem como ser no mundo.
Apesar das supostas adiposidades12 no cenário da escrita predominantemente magra e seca de Graciliano Ramos, Angústia não desmente a visão de mundo e o estilo de seu autor. Como tentaremos mostrar nas páginas a seguir, a exceção só vem confirmar a regra. A visão pessimista da vida, sem lirismo, meios-termos ou adulação, é a marca de Luís da Silva, homem também muito machucado e brutalizado pela experiência, à maneira de seus antecessores (Paulo Honório, de São Bernardo) ou sucessores (Fabiano, de Vidas secas).
As frases curtas, a expressão certeira, a economia descritiva, a seleção do essencial, o retrato metonímico13 das figuras centrais continuam presentes sob o aparente caos do monólogo interior aparentemente sem nexo. Geômetra do estilo, senhor absoluto dos meios expressivos, Graciliano Ramos consegue ordenar a tumultuosa consciência interior do protagonista, dando a Angústia a impressão de um delírio lúcido, meticulosamente construído.
Como querem Antonio Candido e Otto Maria Carpeaux, seus maiores críticos, estão presentes na narrativa os dois elementos estruturantes de sua obra: equilíbrio de um lado, desordem interior de outro; claridade e sombra; razão e inferno (existencial):
“Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas, umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.” (p. 7)
As primeiras páginas de Angústia, vazadas em frases curtas e lapidares (traço marcante do estilo do autor mesmo em searas dominadas pelo delírio subjetivo), contêm em resumo todo o enredo que se desenvolverá a posteriori na ruminação psíquica do narrador. Já no pórtico, Luís da Silva informa que saiu da cama há menos de trinta dias e ainda se encontra em fase de convalescença. Diz-se perseguido por sombras e visões, introduzindo o leitor na atmosfera densa e nebulosa do romance, que tem na consciência individual o palco de sua mímesis14. O leitor logo desconfia de que o narrador decidiu narrar a experiência traumática que desembocou no adoecimento recente, cumprindo assim o papel de um pseudoautor, ou seja, o autor fictício do relato que se inicia.
Na sequência, em um tom direto e agressivo, sem meias-palavras, que aprendemos a reconhecer como marca de muitos personagens de Graciliano Ramos, afirma que não suporta determinadas criaturas, em particular os vagabundos que gemem peditórios nas ruas. A incompatibilidade da convivência com o outro será a tônica do amargo e solitário Luís da Silva, inapto para a vida em comum. A ojeriza aos vagabundos torna-os gigantes na mente convalescente, dando início a uma espécie de delírio persecutório que será o modo dominante do comportamento mental. Embora não goste propriamente de ninguém, o narrador projeta nos vagabundos o fantasma da pobreza antiga (ele chegou a dormir nos bancos das praças) não superada pela situação instável e endividada do funcionário público de poucas posses. No contexto da sociedade brasileira conservadora, mal saída da escravidão, o horror à pobreza não deixa de ser sinônimo de preconceito de classe. Não só os vagabundos, como vários outros fantasmas inconscientes, atormentarão Luís da Silva no decorrer da narrativa:
“Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.” (p. 7)
Do horror aos mendigos passa ao ódio à própria literatura, comparando os livros a prostitutas que se expõem nas vitrinas das livrarias. Misantropo15 e arredio, estende a aversão ao semelhante à atividade intelectual que exerce como funcionário público e jornalista. Na verdade, escreve o que lhe mandam, críticas políticas ásperas, atacando ou elogiando figurões. Imerso na alienação esterilizante da repartição pública (ele trabalha na Diretoria da Fazenda) ou das redações de jornal nas quais vende seus artigos, Luís da Silva enxerga o ofício da escrita como prostituição. Lembra-se inclusive, a certa altura, de um livro de sonetos que escrevera no passado e vendera os versos para rapazes que queriam impressionar as namoradas.
“[...] A linguagem escrita é uma safadeza que vocês inventaram para enganar a humanidade, em negócios ou com mentiras.” (p. 79)
Embora mantenha posicionamento crítico em relação à literatura, o narrador menciona, vez ou outra, a ideia de escrever um livro, dando a entender que o relato que inicia depois dos meses da doença recente é uma preparação para isso. Escrever emerge, assim, como possível saída para a expressão dos tormentos interiores, ainda que se afigure como um ato inútil, sujeito a degradar-se como mercadoria nas vitrinas ou servir de cemitério aos ratos:
“Felizmente a ideia do livro que me persegue às vezes dias e dias desapareceu.” (p. 13).
“Afinal íamos encontrar o armário dos livros transformado em cemitério de ratos. Os miseráveis escolhiam para sepultura as obras que mais me agradavam.” (p. 89)
Depois de abominar os vagabundos e os livros, Luís da Silva não reconhece as próprias mãos, cujas escoriações estão curadas. Sua confissão, como se desconfia, relaciona-se a algum ato perpetrado pelas mãos machucadas. Ao estranhar as partes do próprio corpo, o narrador sinaliza o complexo emotivo que o obseda. A sensação de ser um outro será constante no romance, revelando as pulsões inconscientes em jogo. Logo na sequência, menciona não conseguir datilografar um ofício na repartição onde está, pois, entre ele e o papel, vem colar-se a “cara balofa” de Julião Tavares.
Como costuma acontecer no universo ficcional de Graciliano Ramos, os personagens são apresentados subitamente, sem descrição prévia, fixados por meio de pormenores metonímicos essenciais: as mãos esfoladas do protagonista e o rosto gordo de um suposto rival. Em poucas linhas, aproximamo-nos do núcleo conflitivo da trama. As mãos remetem ao crime que será posteriormente relatado. Luís da Silva assassinou ou julga ter assassinado Julião Tavares, homem asqueroso e odiento que se interpôs entre ele e Marina, vizinha por quem se interessou no passado recente.
Depois de Julião, Marina ocupará o próximo parágrafo no desenvolvimento dos pensamentos associativos que abrem a narrativa. Já em casa, depois de sair da repartição, Luís da Silva escreve o nome da moça no papel. Automóveis roncam, ratos remexem pela casa, Vitória resmunga na cozinha. Não sabemos quem é Vitória, mas deduzimos que seja sua empregada. Numa economia narrativa espantosa, encontra-se, nas páginas iniciais, o romance em epítome16. Um homem comum, um pobre-diabo rodeado por ratos, vive sozinho em sua casa em uma cidade relativamente moderna, tendo a empregada e um gato como únicas companhias. Prepara-se, então, para confessar um crime, que tanto pode ser real quanto suposto, haja vista a atmosfera onírico-expressionista em que se desenrolam os acontecimentos. Angústia, como se nota, não parece um romance tão excessivo assim.
No papel em que escreve o nome de Marina, ato que constitui uma espécie de metáfora da escrita que começa a
ensaiar, Luís da Silva desmembra o nome da antiga namorada e vizinha, formando novas palavras a partir dele,
“ar, mar, rima, arma, ira, amar”. Na sequência dos termos, alternam-se impulsos amorosos e destrutivos
em relação à moça, indícios de ressentimentos não curados. O ato de dividir o nome não esconde ainda as
inclinações sádicas e vingativas da própria sexualidade ferida. Os desenhos que acompanham os nomes
comprovam o fato. Luís da Silva traça rabiscos a esmo no papel – uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher
– dando expressão visual ao trauma inconsciente. No contexto psicanalítico, associações aparentemente
fortuitas, desconexas ou desimportantes dizem muito sobre a psique adoecida.
Os desenhos simbolizam a ambivalência dos sentimentos em curso. A espada e a lira conjugam afetividade e violência, amor e ódio, no âmbito de uma sexualidade agressiva e torturada que culmina na decapitação simbólica da ex-amada. Na mente atormentada, os desenhos feitos ao lado do nome desmembrado estendem-se a outros personagens, políticos, secretários, diretores, comerciantes, transferindo as pulsões sádicas ao mundo circundante num gesto radical de negação do outro.
A onipresença dos ratos na narrativa e a frequência com que Luís da Silva se compara a eles ilustram o tipo angustiado e melancólico que se afunda num processo patológico de autoaviltamento. Nesse contexto, novos personagens emergem nos parágrafos finais do primeiro fragmento do livro, entre eles, o Dr. Gouveia, para quem deve o aluguel, e o judeu Moisés, para quem deve prestações. No movimento último das associações mentais, todos se misturam como um bando de vermes sobre a cara gorda, mole e amarela de Julião Tavares, síntese fantasmagórica das forças opressoras que se abatem sobre o cansado e convalescente funcionário público.
O crime que cometeu ou pensa ter cometido não resolveu seus problemas existenciais, colocando-o de volta no
ponto zero de uma angústia que renasce em espiral. No hábito de se comparar aos bichos (situação muito comum
nos romances de Graciliano Ramos), Luís da Silva termina dizendo que leva uma “vida de sururu”, um tipo de
molusco bivalve comum no Nordeste. Encalacrado em sua concha, remói seus sofrimentos, incapaz de achar
saída. O sadismo com que simbolicamente decapita a cabeça da mulher e a do rival, resíduos metonímicos de um
pesadelo em ritornelo17, também se volta contra seu ego empobrecido e
martirizado, em namoro constante com o suicídio adiado.
O violento instinto de morte retorna sobre o
sujeito enfermo numa reação perturbada ao sentimento de perda insuperável:
“Penso no meu cadáver, magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundo.” (p. 9)
A propensão melancólica se manifesta claramente na imaginação antecipada da própria morte. Conhecida desde a Antiguidade, muitas vezes atribuída aos homens de gênio, a melancolia era vista, no contexto da medicina de Hipócrates18, como resultado do excesso de bile negra no organismo, líquido ou humor, segundo a crença antiga, produzido pelo baço (spleen, que significa “baço”, é o termo usado para nomear a melancolia em inglês). Numa associação astrológica, acreditava-se ainda que os melancólicos eram regidos por Saturno, o planeta das revoluções lentas, caracterizando um estado de tristeza e abatimento profundos e uma perda de interesse pelo mundo exterior, não raro propícios às atividades mentais ou criativas. No Renascimento ou mesmo no Romantismo, a melancolia tornou-se “doença” de artistas.
No contexto da psicanálise, Freud retomou, em importante estudo, o tema da melancolia, caracterizando-a como um estado patológico diferente do luto normal. Enquanto, sob a regência deste último, o sujeito conseguiria superar a perda do objeto depois de um determinado tempo, no estado melancólico, tal superação não seria alcançada19. O melancólico adoece por não ser capaz de superar a perda (que não necessariamente precisa ser a perda de um objeto amado, mas pode ser a de um ideal, de uma profissão ou mesmo de algo indeterminado). É muito comum, no distúrbio melancólico, a incapacidade de distinguir o que exatamente foi perdido. No deserto do ego adoecido, incapaz de redirecionar sua libido20 e reestabelecer as conexões com o mundo exterior, a perda do objeto equivale à perda do próprio eu que com ele se identificou. O melancólico volta-se sobre si mesmo num processo de autorrecriminação dolorosa. Baixa autoestima, insônia, recusa ao alimento são frequentes. Desprovido de valor, o ego se vê incapaz de qualquer realização.
Na verdade, a sombra do objeto perdido recai sobre o eu. A hostilidade com que o sujeito se volta contra si
mesmo,
o sofrimento que se impõe de forma sádica é, no fundo, forma de vingança contra o objeto
perdido. O caso se aplica bem ao estado psíquico de Luís da Silva, que apresenta os principais sintomas da
melancolia. Sua autodegradação constante e sua frustração incontornável são respostas perturbadas a faltas
acumuladas que remontam à infância, caracterizando o transtorno melancólico. Irrealizado nos planos afetivo,
sexual e profissional, Luís da Silva amarga o inferno do vazio de sua existência, vendo em Marina apenas o
ponto para o qual confluem todas as perdas e, em Julião Tavares, homem obeso e oleoso, a intensificação
máxima das forças que o esmagam21:
“[...] tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares muito aumentada.” (p. 9)
Na tradição iconográfica das artes plásticas, o melancólico é representado com a mão sob o queixo, em atitude pensativa, como mostra outro quadro expressionista de Munch, bem adequado para ilustrar o estado depressivo de Luís da Silva.
No vaivém da ruminação interior, entramos em contato com as principais personagens que rodeiam o narrador (conhecidos e vizinhos) antes da entrada em cena de Marina, para a qual confluirão todas as atenções. A narrativa, conduzida inicialmente no presente do indicativo, aproxima o leitor da matéria narrada e revela o pouco distanciamento emotivo do narrador em relação aos fatos, facilitando sua deformação expressiva. Além das impressões do presente, lembranças do passado, sobretudo da infância, acompanharão o relato introspectivo. A fixação na infância é importante elemento que ajuda a explicar as feridas da personalidade atual. Do núcleo inicial da rememoração, destacam-se a figura do avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, e a do pai, Camilo Pereira da Silva. Do avô para o pai, a redução do nome pomposo revela a decadência do mundo rural de onde advém Luís da Silva.
A virilidade do avô, homem proprietário e ativo, arrefece no pai, filho leso, que ficava horas na rede lendo
as aventuras de Carlos Magno. Infere-se que a propensão intelectual de Luís da Silva, funcionário público da
pequena burguesia urbana, tenha sido herdada do pai leitor, findos os negócios da fazenda decadente. Grande
parte da amargura do narrador é resultado da nostalgia do universo sertanejo, onde reinava o avô patriarca,
modelo da masculinidade invejada e do poder perdido.
A força do antepassado, como não poderia deixar
de ser, tem seu esteio no universo patriarcal e escravocrata que enformou os modos de sociabilidade no
Brasil rural por séculos. Nas lembranças de Luís da Silva, emerge a potência avoenga no modo como Trajano
era dono dos músculos de Mestre Domingos (um de seus escravos) e do ventre das escravas, entre elas,
Quitéria.
A exploração do trabalho braçal encontra eco na exploração sexual das escravas, fato naturalizado no cotidiano das antigas fazendas. Mesmo depois da Abolição, o avô não perdeu a pose de patriarca, vigiando as negras em seus partos, mesmo quando as crias não eram suas. A sexualidade desenfreada do velho coronel tinha afinal um objetivo prático: a geração de mão de obra. Muitos de seus filhos bastardos lhe pediam a bênção às escondidas, ainda que não fossem oficialmente reconhecidos:
“Crias de cores e idades diferentes espalhavam-se por aquela ribeira, várias de Trajano, cabras alatoados que apareciam de longe em longe e pediam a bênção do velho às escondidas. [...] Depois da abolição, já sem forças, ainda conservava os modos de patriarca.” (p. 141)
A violência como fato normatizado no universo rural em que vigem os interesses particulares dos proprietários aparece também na rememoração constante de figuras de homens valentes. Até o fim do romance, imagens de jagunços virão povoar a mente de Luís da Silva, em especial a de José Baía, camarada ligado ao avô, que lhe contava, risonho, histórias de onças no alpendre da velha fazenda, compondo aquele tipo muito bem conhecido no Sertão brasileiro: o homem de armas cordial, temente a Deus e matador sanguinário. Um “bom tipo”, como resume Luís da Silva a certa altura:
“As histórias do alpendre eram simples: as onças que armavam ciladas aos bodes não tinham ferocidade. José Baía, bom tipo.” (p. 189)
A lembrança constante de jagunços, como José Baía, ou mesmo de cangaceiros famosos, como Cirilo da Engrácia (que foi morto e amarrado a uma árvore), relaciona-se com o crime (suposto?) do narrador. Para assassinar Julião Tavares, na realidade ou mesmo em delírio, o abúlico burocrata terá de buscar no passado perdido uma cota dessa energia viril represada nos cabras fortes de antigamente. O desejo de matar, arrefecido no funcionário público pelo ramerrão da vida bolorenta, só poderá vir mesmo do fundo do Brasil rural e selvagem, fundo mais que vivo no âmbito da cidade “moderna” (mas atrasada) a que Luís da Silva pouco se adapta:
“– Não brinque, madame. Sou um sertanejo, um bruto, um selvagem.” (p. 37)
Não estranha, assim, que José Baía emerja, em suas lembranças, como um “irmão” ou um duplo invejado, cuja valentia inata, sequer alardeada na fisionomia risonha e tranquila, contrasta com seus muques mofinos, índices da sexualidade castrada. Ademais, o trabalho alienado e monótono, seja na repartição, seja no jornal, obriga-o, ainda, a curvar o espinhaço em atitude de subserviência total aos chefes que lhe dão ordens:
“Lembrava-me disso e apalpava com desgosto os meus muques reduzidos. Que miséria! [...] – ‘Escreva assim, seu Luís.’ Seu Luís obedecia. – ‘Escreva assado, seu Luís.’ Seu Luís arrumava no papel as ideias e os interesses dos outros. Que miséria!”. (p. 142)
Esmagado pela rotina burocrática, engolido pela existência mofina da classe média urbana, Luís da Silva deixa-se embalar pelo sopro épico de um passado heroico irremediavelmente perdido. O espinhaço curvo, traço que compartilha com o Fabiano, de Vidas secas, animalizado em contexto diverso, pode ser comparado com a rijeza máscula de outro personagem que também lhe frequenta as lembranças: Amaro, vaqueiro do avô. Trepado no mourão para laçar novilhas, Amaro assoma, aos olhos rememorativos do narrador, como o sol, princípio vital, visivelmente masculino, claridade fálica22 que dá combustível ao desejo do crime, elaborado como meio de eliminar o rival e elevar-se da condição aviltante de homem traído, funcionário e literato chinfrim:
“Amaro vaqueiro era uma espécie de sol trepado num mourão. O laço que girava em redor dele era a terra. De repente essa terra esquisita caía sobre a novilha careta e prendia-lhe os chifres.” (p. 150)
A avó Germana, que “concebia e paria no couro do boi”, aparece, na memória do neto, como o único modelo de mulher que conheceu e aprendeu a respeitar, completamente submissa à ordem patriarcal e votada ao sexo reprodutivo (sem desejo).
“E sinha Germana, doente ou com saúde, quisesse ou não quisesse, lá estava pronta, livre de desejos, tranquila, para o rápido amor dos brutos. Malícia nenhuma. Como a cidade me afastara de meus avós!” (p. 102)
O fato pode explicar o modo desconfiado com que Luís da Silva olha para as mulheres da cidade, cujos costumes mais livres destoam do arquétipo legado pela avó sertaneja. Perua, piranha, puta, franga, lambisgoia, ordinária, safada são termos com que costuma se referir à Marina, revelando o modo patriarcal de encarar a vizinha, cujo comportamento, unhas pintadas, roupas provocantes, pernões de fora, lábios vermelhos, cabelos loiros despertam sua fúria desde o início do relacionamento.
“As mulheres hoje não vivem como antigamente, escondidas, evitando os homens.” (p. 83)
A decadência do passado rural aparece na rememoração do velho Trajano em seus momentos finais de vida. O avô chegou a quase cem anos, mijando na cama, contando os dedos do pé e delirando com a esposa Germana, já falecida àquela altura. Ele costumava ainda tomar porres homéricos, sendo auxiliado pelo escravo Domingos, que acabara dono de venda sortida e usava até sobrecasaca. O negro levava o antigo dono para casa, curava a bebedeira, mas este vomitava sobre sua sobrecasaca, exigindo o respeito devido ao velho senhor.
A ironia é cruel e não poderia representar melhor a ancestral elite brasileira, autoritária, racista, excludente. Mesmo livre, o escravo não esquece sua arraigada dependência. Mesmo decadente, o patriarca violento não reconhece a ascensão do escravo. A mania de contar os dedos do pé, ato absurdo e delirante da mente caduca, traz a imagem de uma riqueza reduzida a nada. Nova menção ao detalhe metonímico dos pés voltará na descrição da morte do pai, Camilo Pereira da Silva. Na mente tormentosa de Luís da Silva, abundam resíduos oníricos do passado distante num clima persecutório e paranoico. Os pés enormes, magros, sujos, cheios de calos e joanetes, destacados do cadáver do pai, remetem à existência inútil que resultou, enfim, na morte, destino comum de todos e prova do vazio que nos espreita, segundo a filosofia existencial.
Outra lembrança marcante a respeito do pai remete à tortura que este lhe impingia para ensiná-lo a nadar. No Poço de Pedra, na fazenda da infância, Camilo atirava-o num lugar fundo, retirava-o para que respirasse um pouco e repetia a manobra. A cena do afogamento remete aos embates primitivos entre o filho e o pai, aludindo ao complexo de Édipo23 latente, que resulta na castração simbólica. A completa ausência da mãe no romance assinala ainda mais o desamparo profundo do narrador, cuja infância esteve marcada pelo machucamento e pela humilhação (palavras de Antonio Candido)24, explicando, de certa forma, o deserto existencial do presente. Curiosamente, a figura materna virá tarde no romance, quando, depois do crime (real?; imaginário?), sente-se embalado por uma cantiga sem palavras, espécie de placenta sonora apaziguadora que remonta à relação mais primitiva com a mãe (paraíso para sempre perdido no inferno da vida áspera):
“Minha mãe me embalava cantando aquela cantiga sem palavras. A cantiga morria e se avivava. Uma criancinha dormindo um sono curto, cheio de estremecimentos.” (p. 218)
Quanto aos personagens que cercam o narrador no momento presente, alguns merecem destaque. Vitória, a empregada da casa, conversa com o papagaio e lê os jornais para acompanhar o nome dos navios que entram e saem do porto. Além disso, ao receber o ordenado mensal, enterra o dinheiro no quintal, ocupando a cabeça com contas intermináveis. O ato de enterrar e desenterrar moedas e notas, acumulando dinheiro parado (sujeito a perder valor), faz de Vitória, condenada a uma tarefa absurda, um estranho espelho do narrador. Sonhando com o mar, mas presa a terra, a criada, apesar do nome, visivelmente irônico, é nova imagem da vida miserável e desprovida de significado:
“Recolhe a mensalidade e mete-se no fundo do quintal, põe-se a esgravatar a terra como se plantasse qualquer coisa.” (p. 30)
Na verdade, todos constituem incômodos duplos de Luís da Silva, o avô decadente, o vaqueiro da fazenda, o cangaceiro morto, José Baía, os vagabundos pedintes, a criada lesa. Ricos ou pobres, poderosos ou miseráveis, valentes ou covardes amargam o mesmo destino final: morte, cadeia ou loucura. Há uma espécie de fatalidade que anula o sentido dos atos da existência. Um sistema literário pessimista, como lembra Antonio Candido25, caracteriza a obra de Graciliano Ramos. Não estranha, nesse contexto, a presença de certos personagens entregues a ações tantálicas ou sisíficas26: a empregada que enterra dinheiro, o avô que contava os dedos, a vizinha que lava garrafas, o homem que enche dornas. O próprio ato obsessivo e quiçá inútil de mentar acontecimentos, impressões e lembranças repetitivas tornam o longo relato de Angústia o exemplo maior de um suplício de Sísifo ou de Tântalo:
“Chap, chap, chap. A mulher magra não acabava de lavar garrafas.” (p. 59)
Outra imagem obsedante da morte pode ser buscada na cesta de ossos que Dagoberto, estudante de medicina, despejava sobre a cama na pensão onde Luís da Silva morara no passado. No campo das lembranças desses tempos, destaca-se ainda a cena em que o narrador leva D. Aurora, a dona da pensão, e sua neta ao cinema. No escuro da sala de projeção, ele tocava nas pernas da moça, que eram frias. Desde a juventude, portanto, o contato com as mulheres se dá de forma problemática e arredia. O sexo torna-se algo recalcado, não raro associado ao sujo e ao pecaminoso, incapacitando a vida sentimental plena do personagem.
No mesmo sentido, a relação com prostitutas não ocorre de modo tranquilo, como revela a cena em que Luís da Silva encontra uma rapariga magra e doente na rua da Lama, acompanha-a ao quartinho sujo com cheiro forte de esperma, mas se nega ao sexo. Faz questão de pagar mesmo assim e, num ímpeto de revolta surda, diz à moça que ela não é relógio para trabalhar de graça, ainda que não tenha havido relação entre eles. O desejo de que a prostituta largasse aquela vida e se redimisse insinua-se na fala do narrador culpado:
“O amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa, complicada e incompleta.” (p. 102)
“– É. Não se dá. Por que não arranja outra vida?” (p. 81)
“– Não me faça cometer um desatino. A senhora é relógio para trabalhar de graça? A senhora tem obrigação de andar nua diante de mim? [...]” (p. 82)
Afetividade e desejo não conseguem se harmonizar na mente desse narrador sertanejo e bruto, vindo de uma infância solitária e machucada, inserida na dura ordem patriarcal, segundo a qual o sexo atende à reprodução ou à satisfação dos instintos mais baixos, estando ausente, nos dois casos, o amor ou o sentimento. Marina, ao contrário do modelo da avó Germana, desliza perigosamente para um terreno ambíguo, contrariando o arquétipo da mulher santa. É interesseira, quente como pimenta e tem cabelos de fogo. Aproxima-se assim da prostituta, despertando suspeitas constantes e evocando associações com Berta, alemã com quem Luís da Silva se iniciara na juventude. Como ensina a psicanálise, a libido desloca-se, fixa-se em objetos vários, sofre processos de condensação ou de transferência. Na mente alucinada e maníaca do narrador paranoico, personagens se fundem e se separam, como acontece com as imagens de Marina e de Berta:
“Os cabelos de fogo, os olhos e especialmente as pernas da vizinha começaram a bulir comigo. Aquilo deveria ser uma pimenta.” (p. 38)
“Berta, uma alemãzinha bonita que antigamente conheci, também tinha as unhas pintadas e pontiagudas. Aquilo arranhava docemente. A primeira mulher de jeito com quem me atraquei.” (p. 36)
“Foi assim que vi Marina entre as pestanas meio cerradas, como Berta me aparecia. As nádegas cresciam monstruosamente.” (p. 59)
Três vizinhas de Luís da Silva podem ser evocadas como exemplos do modo como o sexo pecaminoso obseda o narrador, impedindo-o de aceitar a conjugação dos impulsos sexuais com os amorosos ou de admitir a existência de comportamentos femininos fora da esfera da submissão patriarcal ou da anulação do desejo.
D. Rosália, que mora em uma casa próxima, paredes-meias com a dele, é casada, mas passa muito tempo sem ver o marido, em constantes viagens. Quando este retorna depois dos meses de ausência, como um bode excitado, os gemidos e os gritos prazerosos do casal chegam aos ouvidos incomodados de Luís da Silva. D. Rosália resfolega e tem espasmos enquanto o marido solta palavrões. Nu em sua cama, Luís da Silva, ao mesmo tempo atraído e enojado, exercita pulsões voyeurísticas27 bastante singulares, trocando a visão pela audição. Torna-se impossível conjugar a imagem da mãe e da esposa com a da mulher que deseja e uiva de prazer:
“D. Rosália, honesta, vivia excitada, e o marido vinha feito um bode.” (p. 101)
Ele chega a imaginar, em pesadelo onírico, órgãos genitais que voam pelo quarto, evocando processos metonímicos (a parte pelo todo), muito comuns no modo como o desejo recalcado costuma se manifestar nos sonhos (segundo as lições de Freud)28. Num surto sadomasoquista, vê-se na cama dos vizinhos, que se mordem sobre ele, em meio a panos sujos e cheiro de esperma. O delírio de Luís da Silva remonta a cenas muito primitivas da psique infantil, que costuma conceber o ato sexual como violação sádica ou ainda imaginar os pais em cópula, desfrutando de prazeres secretos vedados à criança frustrada29:
“Na escuridão a parede estreita desaparecia. Estávamos os três na mesma peça, eu rebolando-me no colchão estreito, picado de pulgas, respirando o cheiro de pano sujo e esperma, eles agarrados, torcendo-se, espumando, mordendo-se.” (p. 102)
Antônia, a criada de D. Rosália, é outra personagem que revolta Luís da Silva, invertendo o modelo da mulher
abnegada, esposa e mãe. Babá dos filhos de D. Rosália, a empregada combina perigosamente o papel maternal
com o da prostituta, perturbando os lugares delimitados para a mulher na rígida ordem patriarcal: ou
“santa”, ou “puta”. Com grande necessidade de machos, conforme palavras do narrador, Antônia vive rebolando
na rua à cata deles. Quando gosta de um, amiga-se, larga o emprego, gasta todas as economias. No entanto,
depois de explorada pelos homens, volta sempre à casa de
D. Rosália, para a felicidade das crianças.
Aos olhos de Luís da Silva, a mulata Antônia, vagabunda e sifilítica, aparece como representação hiperbólica
do sexo livre e selvagem que pode terminar no hospital, como lembra a patroa. Esta também resfolega com o
marido, mas sem perder a pose da mulher respeitável.
No fundo, a rebolante Antônia representa o duplo caricato de Marina, moça de família com comportamento suspeito. Seu Ramalho põe em dúvida a moral da filha, afirmando que quem casasse com ela faria negócio ruim. O velho é também porta-voz dos valores patriarcais ainda arraigados no contexto urbano, afirmando, a certa altura, que “lugar de moça é a cozinha”:
“É uma criatura ingênua, meio selvagem. Acredita em tudo quanto que lhe dizem e tem grande necessidade de machos [...].” (p. 54)
– História, murmurou seu Ramalho com desânimo. Aquela não dá para nada. O homem que casar com ela faz negócio ruim.” (p. 55)
A espanhola D. Mercedes completa o rol das mulheres transgressoras da ordem familiar. Ela é amigada com um figurão local não especificado, talvez um político ou comerciante rico. Tem mobília cara, vive polindo as unhas e cheira à água de colônia. Novamente, estamos diante de um paradigma confuso e ambivalente. Mercedes conjuga papéis que deveriam ficar separados na lógica maniqueísta do patriarcalismo. Não escapa assim do modelo da prostituta, ainda que de luxo. Com o dinheiro do amante, a estrangeira sustenta a filha no colégio e o marido ausente.
Entretanto, o que mais aborrece Luís da Silva é a admiração que Marina nutre pela espanhola, quando diz que esta é linda e parece artista de cinema. Sonhadora, Marina não se adapta ao modelo da mulher doméstica e, por isso, considera o pai, Seu Ramalho, que a chama para lavar pratos, um “velho pau”. Nos luxos de D. Mercedes, projeta os próprios desejos de ascensão que um casamento poderia trazer. Além disso, lê livros da biblioteca das moças, enchendo a cabeça de fantasias perigosas e despertando a ira do narrador:
“Vejam que miolo. E que tendências. Eu, se não fosse um idiota com fumaças de homem prático, lido e corrido, teria cortado relações com aquela criatura. Admirar uma estrangeira que vive só, tem filha no colégio e sustenta marido ausente.” (p. 40)
“Se aquela tonta prestasse, estaria ajudando a mãe, ensaboando panos.” (p. 57)
Ainda no que tange aos vizinhos de Luís da Silva, destaca-se uma família esquisita que se mudara recentemente e vivia trancafiada em casa. Trata-se de um homem barbudo e ensimesmado que tinha três filhas, sujas e amarelas, que vez ou outra apareciam à janela. Logo correram boatos de que as moças eram filhas e amantes do velho, cujo apelido passou a ser Lobisomem. Embora o fato não fique confirmado, o certo é que a possibilidade do incesto entre pai e filhas excita a vizinhança, despertando o horror de todos. Lobisomem torna-se assim nova projeção de Luís da Silva, “monstro” esmagado pela vida miserável (ele vive curvado olhando para os pés) e pelo pecado abominável do incesto, reflexo das pulsões sexuais culpadas:
“Comparava-me a Lobisomem. Eu era quase feliz, e a comparação me atazanava.” (p. 65)
Outro personagem importantíssimo para a trama é Seu Ivo, mais uma encarnação dos vagabundos que perseguem e obsedam Luís da Silva com o fantasma da miséria antiga dos primeiros anos passados na cidade grande. O homem é um andarilho que erra pelo Nordeste inteiro, insinuando-se nas casas sem pedir licença. Vive de esmolas e favores, abrigando-se sob a proteção dos mais remediados. Não tem pouso certo, some e volta periodicamente.
Em casa de Luís da Silva, aparece de vez em quando, meio nu, meio bêbado, para pedir comida. Do ponto de vista social, Seu Ivo é velho conhecido das estruturas patriarcais brasileiras. Posto entre o escravo e o homem livre sem posses, flutua pelo sistema como um quase mendigo, aproximando-se da figura de um agregado andejo e miserável, que tem no favor sua única forma de sustento. No contexto do enredo, ele presenteará Luís da Silva com uma corda velha que furtou ou achou na rua. A corda, um dos elementos simbólicos mais recorrentes no livro, será usada para planejar e executar o suposto crime narrado nas páginas finais:
“Seu Ivo apareceu aqui em casa faminto, meio nu e meio bêbado, como sempre. Enquanto Vitória lhe preparava a comida, fez-me um presente.” (p. 143)
Além dos vizinhos, merecem destaque alguns personagens que convivem mais de perto com o narrador: Pimentel, colega de repartição, e Moisés, o judeu. Este último adquire particular importância por ser o único com o qual o narrador misantropo entabula vaga amizade. Moisés tem um tio, esse sim “judeu verdadeiro”, para quem Luís da Silva deve prestações. Serve de intermediário na dívida, recebe os pagamentos, mas evita cobrar o amigo. O judeu é um dos únicos que escapam à aversão que o melancólico Luís da Silva devota ao semelhante, sendo descrito como um sujeito inteligente e bom. Lido e instruído, prega a revolução proletária, representando, no livro, a ideologia comunista que esteve em um dos lados da polarização política que caracterizou a era Vargas nos anos que antecederam a instalação do Estado Novo em 193730:
“E eu acredito em Moisés que não escora suas opiniões com a palavra do Senhor, como os antigos: cita livros, argumenta. Prega a revolução, baixinho, e tem os bolsos cheios de folhetos incendiários.” (p. 25)
Obviamente, uma revolução comunista não entusiasma de forma alguma o narrador ensimesmado que não consegue se identificar com os vagabundos e tampouco com os trabalhadores. Num certo sentido, Luís da Silva representa uma classe média fracassada sem vocação revolucionária. Não espanta que o slogan “Proletários, uni-vos”, escrito a piche no muro de um bairro pobre, chame mais sua atenção pela falta de vírgula e de hífen, reforçando as veleidades literárias do intelectual medíocre (funcionário público que se afastou dos pobres) e a completa descrença política:
“Está claro que não inspiro confiança nos trabalhadores.” (p. 119)
“‘Proletários, uni-vos’. Isto era escrito sem vírgula e sem traço.” (p. 164)
Apresentados os principais personagens secundários, passemos ao cerne da trama. Como ficou explicado, Luís da Silva começa seu relato depois de se reestabelecer de uma febre que o acamou. Vai alternando lembranças do passado com notações do presente, embaralhando, na mente convalescente ainda em crise, os vários personagens que foram apresentados até aqui. O livro segue o curso livre das associações mentais em ritmo vertiginoso.
Em um determinado momento, o narrador começa a se lembrar do envolvimento com Marina, que se dera no começo
do ano anterior. O namoro com a vizinha e a posterior traição desta foram as causas do crime cuja confissão
ocupa as páginas finais da narrativa. Em clima onírico e expressionista, o relato deixa dúvidas quanto à sua
completa veracidade,
o que não anula o fato de o assassinato ter sido a única atitude encontrada por
Luís da Silva para afirmar-se sobre o rival,
o pedante Julião Tavares, e elevar-se da condição mofina
da rotina burocrática acumulada de fracassos.
Luís da Silva logo avisa que o quintal da casa é o espaço mais importante da sua história, reiterando assim o solipsismo que embasa a completa aversão à convivência social. Do seu quintal, onde costumava ler debaixo da mangueira, enxergou Marina no quintal vizinho da casa da direita, separada da sua apenas por uma cerca. Ela apareceu inicialmente como um vulto em meio às roseiras para esse narrador acostumado a captar os outros apenas por fragmentos ou sombras. De vulto passou a sujeitinha vermelhaça, lambisgoia, coisinha loira, pimenta, mocinha, perua, franguinha, cabrita enxerida, tonta, bichinha sem-vergonha, burra, estúpida, etc., numa sequência de epítetos misóginos que acompanham o decurso do namoro atribulado e revelam bem o machismo do matuto sertanejo transplantado para a cidade.
Na concepção do homem problemático, pouco afeito a veleidades amorosas ou sentimentais, Marina assoma mais como corpo que alma, nádegas, coxas, braços, como “máquina desconjuntada” difícil de montar, despertando-lhe desejos ferozes. A apreensão fragmentária da moça, organismo vivo comparado a um artefato mecânico, revela a incapacidade de humanizar e totalizar as relações, dando-lhes sentido:
“Antes de eu conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa grande quantidade de
pedaços de mulher [...]. Foi difícil reunir essas coisas e muitas outras, formar com elas a máquina que
ia
encontrar-me à noite,
ao pé da mangueira.” (p. 67)
Ademais, a baixa autoestima, típica do temperamento depressivo, ressalta ante a visão da garota atraente de cabelos de fogo. O tímido Luís da Silva sente-se feio e diminuído, compensando a castração simbólica pelo modo bruto como se refere constantemente à vizinha, mecanismo de defesa do macho acuado e impotente. O cenário dos encontros amorosos, a mangueira do quintal, está rodeado de lixo, roseiras mesquinhas, águas estagnadas e cheiros desagradáveis. A atmosfera podre indicia não só o fracasso posterior do namoro como a abjeção dolorosa que acompanha os impulsos sexuais do narrador:
“[...] Encabulei. Sou tímido: quando me vejo diante de senhoras, emburro, digo besteiras. Trinta e cinco anos, funcionário público, homem de ocupações marcadas pelo regulamento [...]. E aquilo era uma garota. Além de tudo sei que sou feio.” (p. 34)
“Nesse ambiente empestado, Marina continuava a oferecer-se negaceando.” (p. 87)
Pulsões sádicas não estão ausentes dos abraços e beijos trocados pelo casal, quando Luís da Silva morde Marina ou imagina serrar seu corpo em pedaços. A fantasia destrutiva de desmembrar o outro, que aparece também no passatempo perverso inicial de fragmentar o nome da moça, remete ao sadismo primitivo da criança que, movida pela inveja, ataca imaginariamente o seio materno que satisfaz e frustra simultaneamente. O ciúme posterior de Luís da Silva, que perderá Marina para Julião Tavares, não deixa de ter origem nas fantasias sádicas infantis, em especial na inveja, que, segundo Melanie Klein31, constitui uma espécie de relação perturbada com o objeto, no caso, o seio materno, que nunca satisfaz completamente, mesmo em condições ideais, o desejo da criança, despertando impulsos de estragar, morder, envenenar, mutilar, cortar em pedaços (exatamente o tipo de fantasia que assombra a mente do narrador nos encontros com Marina). O seio bom, fonte da vida e da criatividade, se vê estragado pelo instinto invejoso. Não surpreende, assim, que um dos seios de Marina, imagem metonímica da mãe primeva32, salte para fora da roupa num dos “amassos” ardentes debaixo da mangueira. A voracidade torna-se a marca da libido represada33:
“[...] Nesse ambiente gelatinoso Marina se movia, nadava, desesperadamente bonita, o peitinho redondo subindo e descendo, a querer saltar pelo decote baixo, pimenta nos olhos azuis [...].”(p. 60)
“O contato da pele quente deu-me tremuras, acendeu os desejos brutais [...]. Olhando-a de cima para baixo, via-lhe os seios, que subiam e desciam [...]. Veio-me a tentação de rasgar-lhe a saia.” (p. 61)
“[...] E Marina estava tão perturbada que se esqueceu de recolher um peito que havia escapado da roupa. Eu queria mordê-lo [...] (p. 62, grifo nosso)
“Nos nossos momentos de intimidade eu sentia às vezes uma tentação maluca, baixava-me, agarrava-lhe a orla da camisa, beijava-a, mordia-a. Isto me dava um prazer muito vivo.” (p. 67-68)
As etapas do namoro seguem ritmo rápido, tendo em vista os negaceios de Marina, que não se entrega sexualmente ao namorado, apesar dos encontros eróticos debaixo da mangueira. Na ânsia de realizar seus desejos, Luís da Silva se vê obrigado a um pedido de casamento junto aos pais da vizinha, Seu Ramalho e D. Adélia, embora revele pouco jeito para tais formalidades. O comportamento do narrador lembra o de outro personagem de Graciliano Ramos, o Paulo Honório, de São Bernardo, homem também muito bruto e sem nenhuma vocação sentimental, embora rico e proprietário. No contexto de São Bernardo, Paulo Honório decide se casar para fazer um herdeiro para a fazenda, enquanto Luís da Silva, em Angústia, busca apressar o sexo. O raciocínio prático, sem laivos de romantismo, aparece também na preocupação com o dinheiro que terá de gastar nos preparativos do casamento:
“Quanto iriam custar tantas maçadas? Talvez os três contos de réis voassem.
– É o diabo, Marina. Vamos ver se arranjamos isto com simplicidade.” (p. 69)
Na sequência apressada dos acontecimentos, Luís da Silva disponibiliza dinheiro para Marina e sua mãe a fim de que arranjem o enxoval. A moça gasta muito e compra pouco, na opinião do namorado econômico, sempre endividado, obrigado a liberar novas quantias para atender aos seus luxos desnecessários: calças de seda, camisas de seda e outras “ninharias”. Marina não esconde a índole arrivista e sonhadora, que antes se revelara na admiração pela espanhola Mercedes:
“Alguns dias depois, Marina me chamou para mostrar os objetos que tinha comprado. Não era quase nada: calças de seda, camisas de seda e outras ninharias.” (p. 72)
Marina insiste no propósito de adquirir roupas finas e até mesmo tapeçarias, desesperando o namorado rude, pouco afeito a finezas e etiquetas, sertanejo selvagem sob a capa de homem de cidade. Para satisfazer as vontades da moça, é obrigado a contrair novas dívidas com o tio do amigo judeu, encalacrando-se. Ela, contudo, começa a receber as compras com frieza, insensível aos seus sacrifícios. Na verdade, já estava interessada em Julião Tavares, como mostra a cena em que é flagrada derretendo-se para ele da janela de sua casa. O namoro se encerra com a opção de Marina pelo pretendente mais rico:
“Julião Tavares pregava os olhos em Marina que, da casa vizinha, se derretia para ele. Tão embebida que não percebeu minha chegada.” (p. 75)
“Escolher marido por dinheiro. Que miséria. Não há pior espécie de prostituição.” (p. 86)
Desde as primeiras aparições no romance, Julião Tavares revela-se um tipo pedante, asqueroso e pegajoso, representando a burguesia endinheirada que o narrador abomina. É descrito como uma figura gorda, vermelha e monstruosa, acentuando, pelo traço expressionista, a aversão de Luís da Silva, que o conheceu numa festa do Instituto Histórico. Julião é figura adulada, filho de uma família de comerciantes ricos, símbolo das convenções e aparências sociais:
“Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor.” (p. 43)
Além da gordura oleosa e gelatinosa que chega a empapar as paredes no auge dos delírios persecutórios do narrador, o burguês odiado faz discursos enraivecidos e patrióticos, recheados de coqueiros e de céu azul, revelando a preocupação única com os próprios interesses.
“[...] Pelo meio da função um sujeito gordo assaltou a tribuna e gritou um discurso furioso e patriótico. Citou os coqueiros, as praias, o céu azul, os canais e outras preciosidades alagoanas [...]” (p. 44)
“O que ficava era aquela gordura que se derramava sobre as paredes.” (p. 95)
“Uma pátria dominada por Dr. Gouveia, Julião Tavares, o diretor da minha repartição, o amante de D. Mercedes, outros dessa marca, era chinfrim.” (p. 168)
Riqueza, retórica balofa e pulhice reúnem-se, assim, para compor a figura de Julião Tavares, que rouba Marina
de Luís da Silva com falsas promessas de ascensão social. Na verdade, ele costumava seduzir moças pobres,
relativamente tolas como ela,
e trazia vários casos de defloramento nas costas. Tendo cedido
facilmente a namorada ao rival, atitude típica de uma índole fraca e derrotista, o narrador atravessará dias
de reclusão, remoendo sua amargura. O sexo represado manifesta-se, como vimos, através da excitação
vicária34, assombrando-o pelos sons que chegam do quarto de
D. Rosália (gritos e gemidos de esposa selvagem) ou mesmo do banheiro de Marina, que dividia parede com o
seu. Na ausência da namorada, Luís da Silva contenta-se em escutar sua “mijada”, acompanhando com frequência
os ruídos que ela faz na casa vizinha.
A regularidade com que Luís da Silva permanece no banheiro, espaço da intimidade por excelência, mostra a fixação dolorosa da libido recalcada e estacionária, que se realiza em impulsos autoeróticos típicos de uma sexualidade regressiva e perverso-polimorfa35. Luís da Silva sente prazer com o prazer alheio, gozando clandestinamente com o sexo dos vizinhos, cujos ruídos lhe chegam, com o mijo excitante da ex-namorada ou com os gritinhos que ela dá no banho:
“Em seguida, mijava. Eu continha a respiração e aguçava o ouvido para aquela mijada longa que me tornava Marina preciosa.” (p. 133)
“O que me encantava eram aqueles modos de garota estabanada, as palavras soltas à toa, pedaços de cantiga, o gluglu da espuma e a mijada sonora.” (p. 134)
Pulsões voyeurísticas (o prazer de ver ou, no caso, de escutar) e pulsões uretrais (o prazer experimentado com o ato de urinar), componentes ambas dos instintos sexuais infantis, ficam evidentes. Em contrapartida, para Antonio Candido36, o banheiro desempenha também papel importante para a emergência dos desejos purificadores do narrador, que se sente sujo fisicamente e anseia livrar-se da abjeção que se volta sobre ele. Sujeira e impulso de limpeza conjugam-se nos atos neurótico-obsessivos do protagonista melancólico (Luís da Silva diz lavar as mãos várias vezes por dia) que pune em si mesmo a perda do objeto amoroso:
“De ordinário, fico no banheiro, sentado, sem pensar, ou pensando em muitas coisas diversas uma das outras, com os pés na água, fumando, perfeitamente Luís da Silva.” (p. 133)
“Alguns dias depois, achava-me no banheiro, nu, fumando, fantasiando maluqueiras.” (p. 132)
“Lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia, lavo as canetas antes de escrever, tenho horror às apresentações, aos cumprimentos, em que é necessário apertar a mão que não sei por onde andou [...]” (p. 156)
O sonho de Marina dura pouco. Uma das cenas marcantes do rápido namoro com Julião Tavares aparece na noite em que ela, exibindo as roupas caras que ganhara do novo amante, passa de automóvel rumo ao teatro para assistir à companhia lírica. A camisa brilhante de Julião Tavares, toda empertigada no corpo (apesar do sobrepeso), contrasta com a camisa do narrador, sempre estufada e fofa, revelando o corpo mofino e o espinhaço curvo, traço principal da desumanização imposta pela vida machucada desde a infância. O rival odiado é também invejado, acenando um campo de realizações vedadas ao amante ferido:
“A minha camisa estufa no peito: é um desastre.” (p. 118)
“Por que seria que o peitilho de Julião Tavares brilhava tanto e não se amarrotava?” (p. 117)
Com o tempo, as visitas de Julião Tavares se escasseiam, e ele parte para novas aventuras. Marina é
abandonada e se submete a um aborto. Obcecado pela ex-amante, Luís da Silva a segue até um bairro pobre,
infectado de mendigos e maloqueiros37 (os vagabundos que tanto o perseguem) e fica em
uma bodega, esperando que ela saia da casa onde entrara. Enquanto bebe uma aguardente, imagina os diálogos
de Marina com a parteira, D. Albertina, ao se submeter ao aborto.
Na mente paranoica, fantasia uma D.
Albertina, ora magra, ora gorda e mole, com unhas negras e sujas, matando o filho de Julião Tavares, um
tumor arrebentado que não virá ao mundo. Os ímpetos vingativos de Luís da Silva prosseguem quando ele
acompanha Marina de volta a casa, xingando-a de puta e de criminosa:
“– Me largue, balbuciou.
– Está bem. Ninguém tem nada com isso, não é? Vamos andando. Puta!” (p. 174)
A decisão de matar o rival vem na sequência, logo depois do aborto feito por Marina e do presente dado por seu Ivo: a corda. Certa noite, num arrabalde distante da cidade, Luís da Silva segue Julião Tavares depois que este sai da casa da nova amante, “uma criaturinha sardenta que trabalhava numa loja de miudezas”. A longa perseguição pelas ruas escuras vem acompanhada de dúvidas, alucinações e lembranças atormentadas do passado. A atmosfera densa, pesadamente noturna, reitera o clima onírico da cena, tornando difícil separar com clareza a realidade do sonho, ou melhor, do pesadelo. A corda, instrumento do assassinato, ganha destaque exagerado, fazendo do desejo de enforcar uma manifestação do desejo sexual recalcado. Como lembra Antonio Candido, há um “falismo”38 violento no livro, que dá vazão à libido frustrada.
Três símbolos fálicos comparecem amiúde no decurso da narrativa e, sobretudo, no angustiante pesadelo final:
a corda, os canos aparentes da casa e as cobras da fazenda da infância. Cenas de violência, buscadas no
passado rural distante, voltam à mente alucinada, para fomentar coragem para o homicídio, ato que pretende
elevar o narrador da sua condição existencial mesquinha.
O crime emerge como um ato de afirmação,
evocando o tema de um famoso romance constantemente apontado pela crítica como uma das fontes de inspiração
para Angústia: Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, escritor do realismo russo.
As lembranças de José Baía, jagunço “manso” que contava histórias de onças, misturam-se à imagem obsedante de Cirilo da Engrácia, cangaceiro que, depois de capturado e morto, fora amarrado a uma árvore. Há também a figura recorrente de Seu Evaristo, homem de certas posses que acabou perdendo tudo e se enforcou no galho da carrapateira. Não se pode esquecer ainda da história assombrosa do moleque negro que desvirginara a filha de um senhor de engenho e tivera testículos e lábios cortados. Torna-se patente a condensação onírica, fusão metafórica de diferentes personagens irmanados por um sentido comum. Na consciência delirante, a rememoração de imagens sangrentas de morte (tortura, assassínio ou suicídio) antecede o enforcamento do rival. Este, depois de asfixiado com a corda, é ainda erguido e dependurado no galho de uma árvore, lembrando os destinos de Cirilo e de seu Evaristo.
As dúvidas são muitas. Ainda que se considere a força do ódio assassino, o ato de erguer e depois amarrar o gordo Julião à árvore soa despropositado para as condições físicas do narrador, que sempre alardeou os muques mofinos. No mesmo sentido, o delírio, a certa altura, com vozes nas imediações do local do crime, reforça a perturbação mental de Luís da Silva. Ele mesmo afirma que “tudo é absurdo, incrível, mas realizou-se naturalmente”, questionando a verossimilhança do relato. A atmosfera de surto maníaco, comum no quadro melancólico já analisado, tem levado alguns críticos a suspeitarem da veracidade do crime, o que não invalida obviamente seu valor simbólico para o sujeito adoecido que busca compensar seus fracassos e dar expressão à libido frustrada39.
A volta de Luís da Silva a casa se faz acompanhar de sentimentos de culpa esperados em casos patológicos como o dele. Ele fantasia que será preso, julgado e ainda escreverá um livro na cadeia. Logo cai de cama e amarga uma febre que se estenderá por dias. Vitória cuida do doente enquanto este recebe visitas das quais não se lembrará muito bem depois. As calças rasgadas e o paletó imundo, provas perigosas do suposto crime, dá-os a seu Ivo, vagabundo e duplo incômodo, embora não confirme o fato (os limites entre realidade e sonho continuam muito tênues). Nenhum sinal da polícia, nenhuma menção ao corpo supostamente amarrado ao galho de uma árvore, nenhuma investigação sobre o crime nos meses que se seguem à convalescença e coincidem com o relato que Luís da Silva inicia a redigir para confessar sua culpa.
“– Leve a roupa, seu Ivo. Seu Ivo tinha vestido a calça rasgada e o paletó sujo. Talvez não tivesse vestido aquela imundície, talvez fosse tudo um sonho.” (p. 222, grifo nosso)
Das lembranças do narrador alucinado, uma certamente merece ressalva. Trata-se de uma cena da infância que poderia ficar como emblema do abafamento torturado desse livro complexo que é Angústia. Em diversos momentos do relato, Luís da Silva lembra-se do dia em que o avô Trajano rolou no alpendre da casa da fazenda e quase morreu asfixiado com uma cascavel enrolada ao pescoço. A cobra, símbolo fálico por excelência, conjuga em si as imagens do cano e da corda, fundamentais na economia imaginária da obra.
Símbolo de vida e de morte, a serpente que estrangula é reflexo da libido feroz, eivada de impulsos destrutivos, sádicos, invejosos e ciumentos. Num universo narrativo em que ninguém se salva, ricos ou pobres, engolfados pela corrente corruptora de uma existência absurda, o que enforca sairá necessariamente enforcado, refluindo sobre si mesmo, em regime melancólico, a poderosa energia de morte que afinal acompanha a “angústia” que está no título:
“Certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que dormia no banco do copiar. Eu olhava de longe aquele enfeite esquisito. A cascavel chocalhava, Trajano dançava no chão de terra batida e gritava: – Tira, tira, tira.” (p. 76)